Falências, queda nas vendas, diminuição do Produto Interno Bruto (PIB). Esse é apenas o prisma mais frio, o econômico, de todas as perdas provocadas pelas 600 mil mortes por Covid-19 no Brasil, marca que foi atingida na quinta-feira (7).
O Brasil tem um enorme custo com que arcar. Bem além do valor humano incalculável dessas mortes, a perda de “vidas estatísticas” vai gerar em longo prazo prejuízos para famílias, para empresas, para a sociedade e para o país – algo da ordem de R$ 3,8 trilhões, conforme calculado para a CNN Brasil.
“Uma coisa é o PIB de um país cair por causa da pandemia com 100 mil mortos. Outra – bem mais perversa – é cair com 600 mil. Existe um legado econômico que vai durar por dez, 20 anos, que é a riqueza, o fruto do trabalho que essas pessoas falecidas deixam de conquistar”, diz Francisco Galiza, mestre em economia pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do conselho editorial da Escola Nacional de Seguros (Funenseg).
“Tudo isso se perde. E quem fica tem mais dificuldades de se reerguer”, completa ele. Foi Galiza quem chegou à cifra de R$ 3,8 trilhões de perdas do país com as mortes por Covid-19, levando em conta que 54,4% das vítimas eram menores de 70 anos de idade, segundo o Portal de Transparência do Registro Civil. Portanto, ainda em idade economicamente ativa.
Os cálculos possíveis
Como especialista em seguros (ele também é sócio da empresa Rating de Seguros e Consultoria), Galiza tem experiência em calcular o valor pecuniário de vidas e de perdas por sinistros.
“Quando se quer avaliar o valor de uma vida estatística numa região, a regra geral é estipular para cada uma dela o valor total de 100 vezes o PIB per capita do país”, diz Galiza. No caso do Brasil, isso leva ao valor de R$ 3,5 milhões para cada “vida estatística” perdida no país.
Fazendo então o cálculo com 600 mil mortes, o Brasil terá sofrido, somente pelos óbitos com a pandemia, uma perda de R$ 2,1 trilhões. Mas o professor levou em conta também a queda do PIB, o endividamento do país, o que se deixará de produzir e o custo de sequelas físicas e problemas mentais que afetam muitos dos que foram infectados. E chegou a R$ 3,8 trilhões.
É a mesma metodologia usada pelos professores americanos David M. Cutler e Lawrence H. Summers, os dois PhDs da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos (Cutler em economia e Summers em políticas públicas).
Num artigo publicado em outubro do ano passado, a dupla calculou o custo das mortes pela pandemia nos EUA (então com 200 mil vítimas fatais, mas projetando para 625 mil mortes no total). Os dois chegaram a US$ 16 trilhões – ou R$ 86 trilhões (com o dólar a R$ 5,42).
“Fica a impressão que a vida americana vale mais”, disse Galiza. Mas, na verdade, a diferença se deve à grande disparidade entre o rendimento médio dos brasileiros e dos americanos.
O gasto médio do governo dos EUA com o tratamento de sequelas físicas e mentais da Covid-19 também é maior que o brasileiro. Só no último dia 17 de setembro foram anunciados US$ 2,1 bilhões em investimentos na prevenção e no tratamento da doença pela gestão de Joe Biden.
Aqui, R$ 3,8 trilhões equivalem a pouco mais da metade de toda riqueza gerada pelo Brasil em 2020, ou seja, 51% do PIB do ano passado, que foi de R$ 7,4 trilhões.
Os gastos contínuos
Uma consequência clínica e econômica do coronavírus são as sequelas de quem contraiu o vírus – de saúde física e mental. Uma pesquisa publicada na revista científica The Lancet mostrou que 68% das pessoas que adoeceram com Covid-19 ainda apresentavam pelo menos um sintoma após seis meses. Depois de um ano, a taxa caiu para 49%.
Outra pesquisa, divulgada pela Universidade Estadual de São Paulo, identificou problemas que vão de fibrose a dor de cabeça em 60% de 750 pacientes internados no Hospital das Clínicas. Esses recuperados relatam sintomas respiratórios, cardiológicos, além de reflexos emocionais e cognitivos com os quais convivem há mais de um ano.
Além do sofrimento humano, isso pesa na economia. São pessoas que não estarão em sua plenitude para trabalhar e poderão depender de pensão. Ou que vão gerar mais custos ao sistema de saúde.
Aqui no Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) – já combalido antes da pandemia – ainda carrega o custo extra da Covid-19. Foram R$ 2,99 bilhões a mais em despesas considerando-se apenas as internações de pacientes com coronavírus do início da pandemia até fevereiro deste ano – antes do pior pico de contaminação – segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares do Ministério da Saúde. A CNN questionou a pasta sobre em que patamar estão esses gastos hoje, mas não obteve resposta.
No mundo todo, a SARS-CoV-2 deixará uma boa parcela das mais de 218 milhões de pessoas com casos confirmados da doença com sequelas. Não sabemos ainda por quanto tempo e quanto ainda pesarão sobre o sistema de saúde.
Mas essa carga extra pode arrastar o impacto econômico da pandemia por gerações, de acordo com um levantamento da The Australian National University (Universidade Nacional da Austrália). Os pesquisadores estimam que esse custo pode chegar a US$ 35,3 trilhões até 2025 para a economia mundial.
Esse seria o pior cenário desenhado pelos especialistas australianos, num estudo publicado em junho do ano passado, considerando que a população mundial não consiga ser totalmente vacinada até 2025.
Na melhor das hipóteses, que é a de todos os países conseguirem imunizar suas populações em 100%, a perda para a economia global até 2025 seria de US $ 17,6 trilhões.
As mudanças demográficas
No Brasil – que concentra 13% das mortes pela doença no planeta – até a expectativa de vida das pessoas diminui. No geral, depois do vírus, os brasileiros vão viver 1,8 ano a menos em 2021, conforme estudo coordenado pela pesquisadora brasileira Márcia Castro, do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard.
Para homens, a pandemia reduziu a perspectiva de vida em 1,57 ano. Já as mulheres perderam, em média, 0,9 ano. E, friamente falando, menos tempo de vida significa menos tempo para produzir riquezas.
A pandemia não aumenta apenas o número de mortes, mas tem um efeito duplo de enorme forte repercussão na demografia: a redução dos casamentos/aumento dos divórcios e a decorrente baixa nas taxas de natalidade.
É o que mostra José Eustáquio Diniz Alves, demógrafo e pesquisador independente e ex-professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Pela primeira vez na história, dois estados apresentam redução da população. Foi uma redução vegetativa pequena, mas uma grande e inédita novidade para a demografia brasileira. Isso aconteceu para os cinco primeiros meses de 2021, mas os dados de junho confirmam o decrescimento”, diz o pesquisador.
Ele se refere aos estados do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que registraram mais óbitos do que nascimentos nos primeiros cinco meses deste ano.
Eustáquio aponta que a decisão de não ter filhos ou de se adiar a formação de famílias está ligada a fatores como insegurança com a situação econômica, isolamento social e medo de levar uma gestação adiante com o sistema de saúde em colapso. E que o fenômeno é global, como ficou evidente em um painel da Organização das Nações Unidas (ONU) que apontou queda na natalidade nos Estados Unidos e na China, por exemplo.
O cancelamento do futuro
Há ainda os órfãos da covid. São pelo menos 130.363 crianças e adolescentes de até 17 anos que ficaram órfãos no Brasil devido à morte de seus pais e/ou responsáveis pela Covid-19 entre março de 2020 e abril deste ano, de acordo com um estudo publicado por um grupo de 16 especialistas em 31 de julho na revista científica The Lancet.
Essas crianças – quando não forem encaminhadas a orfanatos – provavelmente vão morar com avós aposentados ou dividirão a casa com outros parentes, quando puderem. E perderão muito em qualidade de vida.
Estudar, ter acesso à internet e até comer será mais difícil para elas. Na corrida para subir na vida, elas estarão largando numa posição de maior desvantagem. É um cancelamento do futuro para esse grupo.
É o temor que o professor Luis Franco, de Jundiaí (SP) tem por suas filhas, as gêmeas Marina e Rachel, de dez anos. Em fevereiro, ele e a esposa Nadia Franco, de 45 anos, pegaram Covid-19. Os dois foram internados e intubados. “Em 18 de março, dia em que eu tive alta, ela faleceu”, conta Franco.
Nadia era contadora, mas não trabalhava havia oito anos e se dedicava ao cuidado das filhas. Assim, o professor podia dar aula em três turnos, em escolas diferentes. “Agora, estou repensando tudo. Vou ter de trabalhar um turno a menos para cuidar delas, já que não temos mais a estrutura de cuidado que a Nadia nos dava. Isso vai diminuir nossa renda e talvez tenhamos que mudar as crianças de escola, cortar atividades complementares, como inglês e ginástica, e penso até em vender nosso apartamento”, diz ele.
É esse tipo de impacto financeiro, que recai de diferentes formas sobre as famílias das 600 mil vítimas da Covid-19, que forma o custo da pandemia no Brasil. “Tenho, por exemplo, um cliente empresário que morreu de Covid. Os filhos, com carreiras em outras áreas, não vão assumir o negócio. Qual vai ser o futuro dessa empresa e de tantas outras com o mesmo problema?”, indaga Jacomassi.
Um aposentado que vivia sozinho, sem dependentes, deixa uma ausência financeira para o país menor que a de uma mãe ou um pai de família ainda na faixa dos 30 ou 40 anos. A casa que eles deixarão de adquirir, a mensalidade da escola que não vão pagar, o prato na mesa que garantiriam a seus filhos, os salários que receberiam, as dívidas que fariam, as vendas e as compras, os negócios que abririam e fechariam – a falta de tudo isso é um custo para o Brasil.
A retração da atividade econômica
Além da diminuição da população, do poder aquisitivo das pessoas, de sua capacidade de trabalhar, existe também o impacto de todo esse cenário na capacidade produtiva do país.
Foi durante a pandemia que muitas multinacionais tomaram a decisão de deixar o Brasil, como aconteceu com a japonesa Sony, as montadoras Audi e Mercedes-Benz e a varejista de moda Forever 21.
A culpa não é exclusivamente da Covid-19. Ela é apenas um agravante do custo Brasil, composto pela instabilidade política e econômica, a queda do poder aquisitivo da população e outros fatores. “A valorização do dólar no Brasil é muito maior que a média mundial. Isso também conta demais. Mas não acreditamos que a covid seja apenas uma casualidade. Ela conta muito, sim”, diz Jacomassi.
Do início da pandemia até o final de setembro o real foi a moeda que mais se desvalorizou mundialmente em relação ao dólar. A perda acumulada foi de 34%. Enquanto isso, outras moedas que também se desvalorizaram sofreram menos. O rublo russo, por exemplo, perdeu 17,9%. Já o rand sul-africano, o peso mexicano e o yuan chinês tiveram perdas na casa dos 7%, segundo levantamento do próprio Jacomassi.
As empresas nacionais também sofrem muito. Em 2020, um total de 5.500 indústrias fecharam as portas, segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo.
Foram 75 mil os estabelecimentos comerciais com vínculos empregatícios que encerraram definitivamente suas atividades em 2020, segundo o mesmo estudo. Esse número é calculado a partir da diferença entre o total de abertura e de fechamento das lojas.
E outros 50 mil estabelecimentos turísticos tiveram de fechar as portas de março a agosto de 2020. Eram bares, restaurantes, hotéis, pousadas, agências de viagens e serviços de transportes, cultura e lazer.
“Além de não vermos no curto e longo prazo a possibilidade de um crescimento econômico, tudo deixa o cenário mais sombrio para a atividade econômica: os custos dolarizados, a insegurança jurídica, a falta de reformas. Além disso, as medidas sanitárias. Elas também representam um custo a mais para as empresas”, afirma Jacomassi.
Mais uma década perdida?
A pergunta que fica é: por quanto tempo esse estrago econômico pode perdurar? O Banco Mundial estima que levará quase uma década para o Brasil neutralizar todos esses reflexos, conforme o relatório “Emprego em Crise: Trajetória para Melhores Empregos na América Latina Pós-Covid-19”.
Nele, economistas do Banco Mundial destacaram que os efeitos sobre o emprego e os salários do trabalhador médio brasileiro podem perdurar por até nove anos.
“No Brasil e no Equador, embora os trabalhadores com ensino superior não sofram os impactos de uma crise em termos salariais e sintam negativamente apenas impactos de curta duração em matéria de emprego, os efeitos sobre o emprego e os salários do trabalhador médio ainda perdurarão nove anos após o início da crise”, diz um trecho do documento.
Isso porque, além do desemprego, cresce também a precariedade das ocupações. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já mostram isso: o total de trabalhadores sem carteira (os informais) aumentou 4,8 milhões em um ano (do segundo trimestre de 2020 até o mesmo período de 2021).
E vai ser pior ainda, segundo o Banco Mundial, para quem chega ao mercado de trabalho agora. Os jovens, segundo o estudo, vão ter um início de carreira pior, do qual muitos não conseguirão se recuperar.
Mas na quarta-feira (6) o Banco Mundial mostrou ver algum alento para o Brasil: melhorou a previsão de crescimento para a economia nacional neste ano. De acordo com seu relatório semestral, o país deve ter expansão de 5,3% em 2021. Antes, a estimativa era de 4,5%.
“Uma boa notícia é que a campanha de vacinação vem ganhando força nos últimos seis meses e, embora ainda esteja longe dos índices almejados, já tem gerado uma redução nas mortes por Covid-19 na maioria dos países”, observa o relatório do banco.
Mas a instituição, no mesmo documento, piorou o cenário para 2022. Reavaliou o crescimento de 2,5% para 1,7% no próximo ano. O material aponta que os custos sociais da pandemia foram devastadores. Na América Latina, o BM aponta que os índices de pobreza, medidos com base em uma renda domiciliar per capita de até US$ 5,50/dia, aumentaram de 24% para 26,7% — o patamar mais alto em décadas.
Previdência e pensões
O impacto de 600 mil brasileiros mortos no sistema de previdência social não está claro, segundo o economista Claudio Considera, coordenador do Núcleo de Contas Nacionais (NCN) do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Ele calculou que, até o final de julho, 45,6% do total de óbitos no Brasil ocorreu no grupo de pessoas com mais de 70 anos. Foram 247 mil pessoas acima desta idade, segundo dados do Portal de Transparência do Registro Civil – de um total de 541 mil.
“Consideramos o rendimento médio mensal real de aposentadoria e pensão (preços de 2019, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019) de R$ 1,9 mil para as pessoas com mais de 70 anos. Assim, o rendimento mensal total dessas 247 mil pessoas brasileiras falecidas, com idades acima de 70 anos, era de R$ 485,1 milhões. No ano, isso corresponde a R$ 5,8 bilhões”, diz Considera.
Pode parecer uma nefasta economia, mas não é. Na verdade, é dinheiro que deixa de circular: aluguéis que deixam de ser pagos, roupas, remédios que não são comprados e ajuda a familiares que somem de uma hora para outra.
Além disso, lembra Considera, algumas dessas mortes levarão a pagamento de pensão. “Do lado fiscal, se de uma maneira temos os aposentados que deixarão de pesar no INSS, do outro, haverá mais pensões em alguns casos”, afirma ele, referindo-se ao Instituto Nacional do Seguro Social.
Para ele, levando em conta apenas rendimentos e sem descontar o que poderia ser o desemprego de parte dessas pessoas, a economia deixa de ver circular o equivalente a R$ 13,9 bilhões no ano – que é a soma do rendimento mensal de todos (pessoas até 69 anos mais a renda dos maiores de 70 anos). São R$ 139 bilhões em dez anos.
Em nota, a Secretaria de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia informou à CNN que “a pandemia de Covid-19 traz efeitos tanto no aumento de despesas – pela maior concessão de determinados benefícios (em especial pensão por morte e auxílio por incapacidade temporária) – como na redução de despesas, pela cessação de outros benefícios (aposentadorias que deixam de ser pagas pelo falecimento do aposentado, quando este não deixa dependentes beneficiários da pensão)”.
O texto diz ainda não ser “possível, no entanto, estimar o resultado agregado desses fatores, pelo fato de não existir na base de dados a informação da causa da morte do instituidor de pensão. Também não há na base a causa da morte do aposentado”.