Uma obra prevista pelo governo do Estado de São Paulo para alojar pessoas desabrigadas pelas fortes chuvas que atingiram São Sebastião no início do ano está sendo planejada para uma área com histórico de alagamento no bairro de Camburi. O anúncio do empreendimento nas redes sociais do prefeito Felipe Augusto (MDB) mobilizou a população local, que reclama da falta de infraestrutura da região e critica a ocupação do terreno que funciona como regulador natural de enchentes.
“Não vai adiantar nada meter um monte de casas lá, não tem nem esgoto. Quando chove, a água fica concentrada lá, fica tudo cheio de lama”, conta Ronaldo, morador de Camburi há 26 anos, que perdeu o carro nas chuvas de fevereiro. Ele, assim como outras pessoas que conversaram com a Agência Pública sobre o empreendimento, pediu para não ter o sobrenome mencionado. Para várias delas, o problema da falta de moradia não será resolvido com a construção de prédios em um local considerado de preservação ecológica.
O terreno de 20 mil metros quadrados no sertão da praia de Camburi é conhecido na comunidade como “fazendinha” – um sítio que abriga uma nascente de água limpa que abastece parte da população. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, estuda construir no bairro um conjunto habitacional com 400 unidades. Em julho, o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) publicou um decreto declarando o interesse social na desapropriação do terreno.
A Pública viajou até Camburi e ouviu diversos relatos de que a área escolhida para o novo empreendimento alaga na época das chuvas, por ser um terreno de brejo e de escoamento natural das águas do rio Camburi e seus afluentes.
Sete meses após o desastre que vitimou 65 pessoas no litoral norte paulista, a CDHU já iniciou também a construção de mais de 700 moradias nas praias de Maresias, Baleia Verde e Barra do Sahy para pessoas que perderam suas casas e ficaram desabrigadas.
Terreno alagado nas chuvas de fevereiro (à esquerda) e situação atual (à direita)
Ao menos em um outro caso, o terreno escolhido para as construções também alaga. Em junho, um dos canteiros de obras de moradia na Baleia Verde ficou alagado por conta da chuva.
Considerada de caráter emergencial, a obra em Camburi acabou sendo dispensada do processo de licenciamento ambiental. Procurada pela reportagem, a Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) – órgão do Estado responsável por licenciar esse tipo de empreendimento – informou que recebeu pedido da CDHU “a respeito da necessidade da adoção de medidas imediatas para a inserção de licenciamento em vista do colapso total e parcial de inúmeras residências decorrentes de deslizamentos ocasionados por chuvas intensas no município de São Sebastião”.
Diante disso, alegou a Cetesb, “a Companhia [CDHU] ficou dispensada, em situação excepcional, de obtenção de autorização para a supressão de vegetação e intervenção em APP [Áreas de Preservação Permanente]”. A nascente que existe no terreno, por exemplo, é um tipo de APP, assim como o entorno de um rio que corta a região.
Nascente de água que fica dentro do terreno
Área destinada para moradia funciona como “piscinão natural“
Um estudo diagnóstico da situação socioeconômica e ambiental da bacia hidrográfica do rio Camburi realizado pelo Fundo Brasileiro de Educação Ambiental (FunBEA) apontou que a região do terreno onde estão previstas as casas da CDHU é de alta importância ecológica e para o próprio controle de enchentes.
Luan Harder, engenheiro sanitarista ambiental e coordenador do estudo, explica que o terreno é uma das únicas áreas de alagamento natural de Camburi, ou seja, uma porção de terra que concentra as águas da chuva sem causar prejuízos para a população.
“Todas as outras áreas de alagamento natural já foram ocupadas, não tem mais para onde a água ir. A fazendinha é fundamental para a regulação das enchentes na bacia hidrográfica do rio Camburi. Um projeto dessa dimensão seria catastrófico para o bairro”, afirma.
Moradores contaram à reportagem que consideram a área um “piscinão natural” e relataram que a nascente do terreno foi uma das poucas fontes de água da região que não foi contaminada logo após o desastre. Na época, turistas usaram o heliponto que pertence ao empresário Abílio Diniz e fica dentro do terreno para deixar o litoral.
Até mesmo o governador Tarcísio de Freitas pousou de helicóptero no local quando chegou a São Sebastião para acompanhar a resposta à tragédia e transferiu temporariamente a sede do governo para a cidade.
Terreno parcialmente alagado após chuvas em outubro de 2022
O terreno é uma das maiores áreas abertas do chamado Sertão do Cacau. Cercada por morros ainda marcados pelos deslizamentos de fevereiro, a propriedade está situada em uma altitude de 2 a 4 metros em relação ao nível do mar. Bem próximo a uma das bordas do terreno, passa o rio Bacarirá, um dos afluentes do rio Camburi. O acesso se dá pela rua Tijucas, que também é a única via que liga o Sertão à rodovia Rio-Santos.
Angelo Montini, engenheiro civil com experiência na projeção de casas em Camburi, explica que, por causa de todas essas características, o solo da propriedade é pouco resistente, tomado por brejo. “Isso exige fundações profundas, de 50 metros de profundidade, o que encareceria muito o projeto de moradia”, diz.
O histórico de alagamentos e a presença de cursos d’água nas redondezas do terreno precisam ser levados em conta no projeto de habitação, bem como a preservação das áreas de preservação permanente, defende a bióloga Aline Cruz, da Fundação SOS Mata Atlântica, que atua na região. “Sem a preservação do local e se for feito qualquer tipo de construção que não preveja essa dinâmica [das águas], a obra vai inundar e vai trazer riscos”, alerta.
“É preciso ter o cuidado de avaliar se não vai ter nenhum tipo de risco para essas pessoas que já passaram por uma situação delicada. Aliás, passam a vida inteira: muitas viveram na iminência do risco, até acontecer o [desastre] que aconteceu, e não se pode colocar de novo essas pessoas em risco”, complementa Gustavo Veronesi, coordenador do programa Observando os Rios, da Fundação SOS Mata Atlântica.
Parte do morro que fica ao lado da propriedade cedeu com as chuvas. Na parte inferior, a rua Tijucas, única via de acesso ao terreno
Terreno já recebeu estacionamento de ônibus escolares, que ficaram atolados
Em 2021, a empresa de transporte urbano Sancetur instalou um estacionamento de ônibus escolares na mesma área que será desapropriada para a construção de moradias da CDHU em Camburi.
Em outubro daquele ano, as chuvas que atingiram o local foram suficientes para atolar os ônibus. “Na primeira chuva que deu, os ônibus tiveram que ser tirados de lá de guindaste”, conta Fernanda Lage, moradora da região há 3 anos e frequentadora de Camburi há mais de uma década. A população se mobilizou para protestar contra o estacionamento no terreno, que também afetou o fluxo do trânsito da única rua que dá acesso ao Sertão do Cacau, por conta da entrada e saída dos ônibus.
Instado a se manifestar, o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto, disse que não havia restrições para a instalação da empresa no local. Ele se valeu de uma lei aprovada em 2020 pelos vereadores que havia permitido a operação de estacionamentos de veículos e embarcações em áreas de restrição, como está categorizada a região.
Ao final, porém, a pressão popular teve efeito e os ônibus foram retirados. “Eles acabaram desistindo da ideia, foi uma coisa bizarra. A gente conseguiu tirar de lá no grito”, diz a moradora.
Planejamento da CDHU tem que ser participativo, diz urbanista
Anderson Kazuo Nakano, professor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) que trabalhou no projeto Litoral Sustentável, do Instituto Pólis, explica que o planejamento urbano ambiental da zona costeira de São Paulo é dificultado por suas características geográficas, como a faixa estreita de terra plana e urbanizável entre o oceano e a Serra do Mar.
Para o urbanista, o empreendimento da CDHU em Camburi precisa ser acompanhado da participação da população, por conta das fragilidades ambientais e dos riscos da construção. “Isso tem que ser feito com muito cuidado e controle técnico, muita discussão pública com a sociedade para ter clareza de quais são as necessidades que precisam ser atendidas para ser feita uma boa ocupação urbana, com implantação de infraestrutura. O problema da inundação no Sertão do Cacau é velho”, diz.
Segundo Nakano, as construções de moradias nas áreas litorâneas nem sempre consideram as particularidades locais do ambiente. “No litoral, os predinhos da CDHU são muito ruins do ponto de vista arquitetônico, urbanístico e paisagístico. É tudo muito homogêneo. Muitas vezes são inadequados para o clima e o microclima do litoral, com materiais que se deterioram com a umidade e a salinização”, afirma.
“No médio e longo prazo, as famílias geralmente saem e vão buscar outra moradia. A CDHU precisa começar a trabalhar com modelos mais diversificados de soluções habitacionais, inclusive de produção de conjuntos habitacionais novos”, complementa o urbanista.
Governador Tarcísio em construções da CDHU no litoral norte
O plano diretor de São Sebastião limita a altura dos prédios a 9 metros, equivalente a três andares. Em 2021, a prefeitura aprovou mudanças no plano, que permitiram maior adensamento populacional em bairros com risco de deslizamento. Após o desastre do Carnaval, o governador sugeriu aumentar o gabarito das construções de edifícios para 15 metros, com a finalidade de abrigar mais pessoas.
Fontes ouvidas pela Pública expressam preocupação com a possibilidade de que a construção de prédios mais altos para atender pessoas desabrigadas abra um precedente para a verticalização de São Sebastião. “Existe um movimento relativamente antigo contra a verticalização de determinadas partes do município, principalmente as mais próximas às praias. É sempre uma pressão por parte do mercado imobiliário e dos investidores imobiliários em tentar ganhar mais possibilidade de adensamento construtivo, para que eles possam construir mais imóveis e com isso faturar mais”, afirma Nakano.
Falta de infraestrutura prejudica quem já vive na região
A praia de Camburi não é atendida por coleta e tratamento de esgoto pela Sabesp, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo. O abastecimento de água também não abrange a região, fazendo com que os moradores recorram a fontes naturais, como a nascente da propriedade. A Sabesp informou à reportagem que prevê a implantação do sistema de tratamento de esgoto no bairro em 2027, mas estimativas anteriores do órgão projetavam um prazo de 15 a 30 anos para a instalação da rede.
O estudo do FunBEA identificou que a ausência de tratamento de esgoto faz com que os resíduos domésticos sejam recolhidos em fossas nas casas ou lançados diretamente nas águas dos rios, impactando a balneabilidade das praias e a ocorrência de doenças relacionadas à falta de saneamento.
Monitoramentos da qualidade da água do rio Camburi realizados pela SOS Mata Atlântica e pelo FunBEA mostraram que a poluição no curso d’água acompanha a urbanização nas proximidades dos rios. “A água nasce bem limpa e vai perdendo sua qualidade conforme passa pelas comunidades. Temos várias bases de informações sobre o rio e todas dizem que a qualidade da água está muito ruim”, aponta Luan Harder.
Como todo o litoral paulista, a praia de Camburi passa pelo fenômeno que os especialistas chamam de população flutuante ou ocasional, ou seja, a quantidade de pessoas na região aumenta durante feriados e temporadas de férias. Segundo dados do Plano de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte, a população de Camburi chega a dobrar em períodos de alto fluxo turístico: salta de cerca de 9.600 pessoas para 20.000, entre turistas e locais.
Área do terreno que CDHU estuda construir moradias
A moradora Fernanda Lage diz que a falta de infraestrutura do bairro é perceptível na alta temporada. “O Sertão do Cacau inteiro é atendido por um único mercado, que fica lotado nas férias. O trânsito na rua Tijucas fica parado, uma fila imensa de carros manobrando, porque é a única via de acesso”, conta.
Ela estima que a construção de moradias da CDHU pode agravar os problemas do bairro. “A questão não é dar moradia para quem perdeu tudo, e sim colocar essas pessoas em uma área sem estrutura e que alaga constantemente.”
Os traumas do desastre
Traumatizados com o que viveram na madrugada de 19 de fevereiro, quando viram a chuva invadir suas casas, os moradores do Sertão do Cacau vivem com medo de novos temporais e têm dúvidas sobre o novo empreendimento.
“Quando chove à noite, minha mãe não dorme. Ela ficou com crises de ansiedade depois da enchente, às vezes pego ela chorando sozinha”, relata Solivalda dos Santos, de 36 anos, sobre sua mãe, Alice Maria dos Santos, de 82. “Eu peguei uma pneumonia depois dessa enchente, quase morri. Fiquei dentro d’água até o dia amanhecer, com água por aqui”, recorda Alice, apontando para altura do peito.
“Eu nem mando as crianças para a escola quando tem chuva. A diretora não entende, acha que é frescura, mas é porque a gente pegou trauma mesmo”, conta Solivalda.
Dona Alice e a filha, Solivalda
Toda a família mora em uma comunidade de palafitas a menos de 500 metros do terreno onde será a obra da CDHU. Mais de 30 crianças vivem no local. Depois do desastre, a Cruz Vermelha de São Paulo forneceu eletrodomésticos e cestas básicas por três meses para os moradores, diz Solivalda. Mas foi só. Ela afirma que a Prefeitura de São Sebastião não ofereceu ajuda para a comunidade.
“Aqui é esquecido, mas não tenho vontade de sair. Meu marido morreu aqui, quero continuar aqui até morrer também”, diz Alice. Nascida em Buerarema, no sul da Bahia, ela se mudou para Camburi em 2000 por influência do marido, que trabalhava na região. Criou seus filhos e netos na casa onde vive há 23 anos e não pensa em voltar para a terra natal.
“O que eu estava pensando era que como a gente já mora aqui há muito tempo, em vez da gente ir para lá [CDHU], a gente continuaria aqui, só que com tudo regularizado. A gente quer ter direitos, pagar nossa luz e ter água. Eu queria ter algo que eu pudesse falar que é meu, para ser cidadã, pagar meus impostos e viver correto”, diz Solivalda.
Casa da família de Alice Maria dos Santos
Outro local atingido pelo desastre em Camburi é a Vila Débora, uma região demarcada como Zona Especial de Interesse Social no plano diretor de São Sebastião e que fica próxima ao terreno escolhido para a obra da CDHU.
Cristina Oliveira, que trabalha em Juquehy e mora na vila, conta que ficou duas semanas fora de casa por causa da enchente. Na época, uma de suas filhas tinha 3 meses de idade. “Quando a água chegou na altura da minha cama, eu pensei: onde vou colocar minha bebê? Saí com ela nos braços, segurando no alto.”
Para ela, o empreendimento da CDHU poderia ajudar a aliviar os problemas de moradia na região, desde que a construção seja elevada para não ser afetada pelas cheias. “Eu tive que me mudar por causa da enchente, minha casa ficou cheia de mofo. Ainda fiquei 6 meses lá e depois me mudei. Antigamente não alagava tanto, agora tá mais fácil de alagar”.
Trecho de rua da Vila Débora
Pouco tempo depois do anúncio da CDHU em Camburi, moradores da região organizaram um abaixo-assinado para pedir informações e exigir esclarecimentos e planos de impacto ambiental da construção. O pedido foi encaminhado à Companhia, mas, segundo moradores ouvidos pela reportagem, a resposta não contemplou todos os questionamentos.
A Renova Camburi, associação comunitária de moradores, enviou uma carta para o governo estadual, a Prefeitura de São Sebastião e o Ministério Público de São Paulo solicitando explicações. Michele Delgado, diretora operacional da entidade, diz que há espaço para diálogo com as instituições públicas, mas faltam informações mais transparentes sobre a obra.
“A especulação só vai causar sofrimento para essa comunidade que já está assustada. É importante que tudo seja feito com muita responsabilidade, estamos falando de pessoas que acabaram de passar por uma tragédia”, diz Delgado.
Outro lado
Questionada sobre os riscos de alagamento do conjunto habitacional em Camburi, a CDHU informou apenas, por meio de nota, que “os estudos permanecem em andamento e levam em consideração todos os aspectos necessários para a edificação do empreendimento, entre eles, temas ambientais e a solução de drenagem adequada”.
A Cetesb informou que, em geral, a Avaliação de Impacto Ambiental é realizada para empreendimentos com área a partir de 700 mil m2, o que não é o caso do conjunto habitacional.
A Prefeitura de São Sebastião também foi questionada pela escolha do terreno para a construção das moradias e o fato de ele alagar, mas não se manifestou a respeito. Declarou somente que existia um estudo das áreas de risco anterior à catástrofe e que agora será necessário atualizá-lo devido ao surgimento de novos pontos críticos no município. Disse que ainda não há uma estimativa para a conclusão do estudo, a ser elaborado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas.
Sobre o déficit habitacional do município, a prefeitura disse que irá contratar uma empresa para elaborar o Plano Local de Habitação de Interesse Social.