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Direita avança enquanto Gonet aceita ser mero espectador na “conciliação” do STF

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DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

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Uma Procuradoria-Geral da República (PGR) domesticada assiste inerte à decisão que a tornou mera observadora sobre os trabalhos de uma “comissão especial de conciliação” criada no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a tese jurídica do “marco temporal” para demarcação de terras indígenas.

A fabulação jurídica ruralista já foi declarada em setembro passado, por nove votos a dois, inconstitucional em plenário do próprio STF. Os indígenas chegaram a cogitar não indicar nomes para a “conciliação” adotada monocraticamente por um ministro do tribunal, Gilmar Mendes.

A decisão que deu ao Ministério Público Federal (MPF) a oportunidade de participar da suposta conciliação “tão somente na condição de observador” foi tomada por Mendes no final de junho e apoiada por Paulo Gonet, o procurador-geral da República escolhido por Lula. Gonet e Mendes foram sócios-fundadores, em Brasília, de uma empresa privada de educação chamada IDP. Mendes determinou o próximo dia 5 para o início da dita conciliação.

A Agência Pública apurou que, nos bastidores, procuradores da República cobram uma reação da PGR sobre o papel que lhe foi atribuído.

A Constituição reserva ao MPF uma função bem diferente. O artigo 232 diz que os indígenas “são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses” e que o Ministério Público deve “intervir” em “todos os atos do processo”. O artigo 6º da Lei Complementar 75/93 diz que cabe ao Ministério Público da União o papel de “defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”.

Intervir e defender virou, por decisão do STF, simples observação.

Organizações indígenas como a mais representativa, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), já manifestaram sua oposição à criação de uma conciliação em torno do “marco temporal”. Atônitas, agora se perguntam onde está o MPF na hora de defender seus direitos.

Gonet acolheu a decisão do STF. Disse, em petição, que só vai se manifestar sobre “o tema de fundo” após o encerramento da “comissão especial”. Levando em conta que a suposta conciliação é o próprio objetivo do ministro relator, se ela ocorrer Gonet irá se manifestar sobre algo já encerrado. “No mérito, em prestígio às medidas empreendidas por Vossa Excelência visando à solução consensual da controvérsia debatida nos autos, reservo-me para opinar sobre o tema de fundo após a conclusão dos trabalhos da Comissão Especial”, escreveu o procurador-geral.

Haja prestígio.

De forma prestativa, Gonet já indicou a “observadora” da PGR, a procuradora da República Nathalia Geraldo Di Santo, que vem a ser coordenadora da assessoria jurídica cível do gabinete do procurador-geral. Di Santo é relativamente novata no órgão, pois tomou posse no MPF há pouco mais de três anos, em janeiro de 2021. 

O MPF tem, em suas fileiras, procuradoras e procuradores com larga experiência no tema indígena. Ao longo dos anos, o órgão produziu especialistas que se tornaram referências jurídicas na matéria, como Ela Wiecko e Deborah Duprat, para citar apenas dois exemplos. Existe até uma câmara específica para o tema das populações indígenas e comunidades tradicionais, a 6ª, que funciona na própria sede da PGR, em Brasília.

Enquanto Gonet vira espectador, a direita não perde tempo e ocupa os espaços a fim de pautar os trabalhos da comissão. O Fórum Nacional dos Governadores indicou como membro titular o governador de Mato Grosso do Sul, Eduardo Riedel (PSDB), um apoiador declarado de Jair Bolsonaro. Para suplente, foi indicado um dos políticos mais bolsonaristas do país, o governador Jorginho Mello (PL-SC).

O colégio nacional dos procuradores- gerais dos estados já indicou como representante titular a procuradora do governo de Mato Grosso do Sul, Ana Carolina Ali Garcia. Seu suplente será o procurador do estado de Santa Catarina, Márcio Luiz Fogaça Vicari. Procuradores-gerais de estado são pessoas da confiança dos governadores.

Mendes decidiu formar a comissão com 24 membros titulares distribuídos da seguinte forma (os critérios para essa divisão não estão claros): Senado (3 nomes), Câmara dos Deputados (3), Advocacia-Geral da União (1), Ministério da Justiça (1), Ministério dos Povos Indígenas (1), Funai (1), Fórum de Governadores (1), Colégio Nacional de Procuradores de Estado (1), Confederação Nacional dos Municípios e Frente Nacional dos Prefeitos (1, representando as duas entidades), requerentes das cinco ações de controle de constitucionalidade (1 representante de cada ação, a ser indicado pelos requerentes de cada ação) e Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (6).

Das cinco ações citadas por Mendes, duas foram ajuizadas por partidos de direita e extrema direita, como o PL de Bolsonaro. Dos 24 nomes, portanto, pelo menos 11 estarão sob influência direta da política dos não indígenas; no Congresso, majoritariamente anti-indígena.

Mas também há dúvidas sobre outros membros da comissão indicados pelo governo Lula, sobre se realmente estão dispostos a defender a posição dos indígenas. A AGU, por exemplo, escolheu como seu representante Pedro Vidal Bastos Guimarães. Sua função na AGU é dirigir um certo “departamento de assuntos federativos da Secretaria-Geral de Contencioso” da AGU.

Em entrevista para a edição de maio/junho da Revista da AGU, Guimarães reclamou de uma “sociedade que frequentemente recorre à judicialização para resolver conflitos”. A solução, segundo ele, é a conciliação. “A mudança de paradigma pode começar com a adoção de uma postura mais aberta ao diálogo por parte de um dos principais atores do processo. A tentativa é reconstruir as pontes com os entes federados e fortalecer os laços entre os diferentes governantes das esferas governamentais por meio da resolução consensual de litígios judicializados.” 

A respeito do advogado indicado pelo Ministério da Justiça, Victor Epitácio Cravo Teixeira, consta no currículo que tem especialização em telecomunicações e foi procurador-geral da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) de 2011 a 2016. Ocorre que não está em discussão nenhum “marco temporal” de telecomunicações.

A formação de uma comissão nunca foi solicitada ao STF pelo movimento indígena, que vê a indefinição do tribunal sobre a Lei 14.701 como um fato motivador de violência no campo. “Da negativa dos direitos territoriais indígenas deriva uma série de violências que atentam sistematicamente contra a segurança física e a vida dessa população em todas as regiões do país”, escreveu a Apib em petição a Mendes, na última quinta-feira (25), no autos da ADC 87.

A entidade solicitou novamente a imediata suspensão de diversos trechos da Lei 14.701, que foi aprovada pelo Congresso em clara retaliação à decisão do STF, que havia declarado, poucas semanas antes, como inconstitucional o “marco temporal”. A Apib chama a 14.701 de “Lei do Genocídio Indígena” e “o maior retrocesso aos direitos dos povos indígenas desde a redemocratização”.

Na peça, subscrita pelos advogados Maurício Terena e Ingrid Gomes Martins, a Apib mencionou os “trágicos efeitos” da promulgação da lei que são “sentidos pelos povos indígenas em diferentes regiões do país”. No Norte, o número de atentados contra os Guajajara “aumentou de modo vertiginoso”, bem como a invasão a territórios como o de Uru-Eu-Wau-Wau. No Nordeste, houve incremento da violência contra os povos Pataxó e Pataxó-Hã-Hã-Hãe.

“No Centro-Oeste, a investida de fazendeiros contra indígenas aumentou de forma alarmante em Mato Grosso do Sul, sobretudo contra o povo Guarani Kaiowá. Na região sul, o povo Avá Guarani, do Paraná, viu-se sob uma ofensiva violenta para saída do território, cenário semelhante ao vivido pelo povo Kaingang, do Rio Grande do Sul”, disse a Apib na petição.

“A indefinição deste Supremo Tribunal Federal acerca da tutela provisória de urgência de natureza cautelar requerida abre margem para atuação de toda sorte de oportunistas dentro das Terras Indígenas, contribuindo para a consolidação de um quadro generalizado de danos irreparáveis e de difícil reparação para os Povos Indígenas do Brasil”, apontou a Apib.

Os indígenas pedem socorro ao mais alto tribunal do país. Quem vai ouvi-los?

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