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Os peritos tentaram levantar a discussão no STF, mas foram acossados

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DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

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Na última quarta-feira (14), o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) foi palco de um raro desagravo a um de seus ministros, Alexandre de Moraes.

O presidente da corte, Luís Barroso, o ministro mais antigo em atividade, Gilmar Mendes, e o procurador-geral da República, Paulo Gonet, exaltaram o trabalho desse irreparável brasileiro que se tornou alvo de “tempestades fictícias” (expressão de Barroso). No dia seguinte, prontamente Gonet arquivou uma queixa-crime do partido de direita Novo sobre o assunto. Em 24 horas, o procurador-geral analisou, concluiu e mandou para a gaveta as dúvidas levantadas a partir da divulgação de uma série de reportagens, iniciada na terça-feira (13), dos jornalistas Fabio Serapião e Glenn Greenwald na Folha de S.Paulo.

Foi tudo a jato, sem direito a contemplação nem hesitação. Até domingo (18), as reportagens continuaram sendo publicadas, ao mesmo tempo que já estavam arquivadas na Procuradoria-Geral da República (PGR). Em Brasília, contrariando as leis da física, dois corpos podem ocupar o mesmo lugar no espaço ao mesmo tempo.

O corporativismo de altas autoridades do Judiciário e do Ministério Público não ajuda em nada a fortalecer a confiança dos brasileiros nas instituições. A elas caberia, no mínimo, uma análise aprofundada sobre os fatos trazidos pelas reportagens antes de qualquer manifestação ou decisão. Não abrir uma investigação, ainda que seu resultado final possa ser o próprio arquivamento, demonstra fraqueza institucional, e não força.

Repetindo o que já escrevi nesta newsletter/coluna em 2023, a democracia não existe como ideia solta no vácuo, ela precisa da confiança dos cidadãos para existir e prosperar. Por isso não basta ao STF dormir sobre os louros de ter evitado um golpe de Estado, como de fato ajudou a evitar. A democracia brasileira é devedora do papel corajoso do STF, em especial de Moraes, submetido a enorme pressão real e virtual. Foi divulgado que até sua prisão ilegal e inconstitucional estava sendo orquestrada por militares bolsonaristas. Mas tudo isso não torna o STF automaticamente imune a críticas sobre a condução dos seus inquéritos.

Elas são variadas e antigas. Começaram lá em 2019 já na abertura, por uma portaria do então presidente do tribunal Dias Toffoli do primeiro Inquérito das Fake News (nº 4.781), tendo como vítimas “a Corte, ministros e familiares”. Ele foi instaurado sem a manifestação do Ministério Público Federal (MPF) e amparado, de forma controversa, no regimento interno do tribunal.

Agora em março essa anomalia, até hoje sob sigilo, completou cinco anos sem prazo para acabar. Pode-se dizer que, a princípio, o remédio amargo se justificava pelo tamanho do ataque à democracia orquestrado pela extrema direita, a começar pelo então presidente da República Bolsonaro, que iria redundar na tentativa de uma insurreição em janeiro de 2023 contra o resultado das eleições de 2022. Porém, um ano e meio depois do 8 de Janeiro, fica difícil justificar a tramitação eterna e secreta do inquérito.

As objeções mais veementes sobre a forma de condução dessas investigações por Moraes/STF vinham e vêm principalmente da extrema direita bolsonarista mais cínica, antidemocrática e hipócrita (lembretes: nunca manifestam nenhuma preocupação do gênero quando as vítimas do sistema policial-judicial são os pobres da periferia ou os políticos e movimentos sociais do espectro da esquerda. Os ataques sistemáticos de Bolsonaro aos direitos humanos ao longo de décadas ajudam a explicar a própria ascensão da extrema direita no Brasil. Durante o seu mandato na Presidência, Bolsonaro desmontou, por exemplo, o Mecanismo de Combate à Tortura, conforme a Agência Pública noticiou em 2019. O ex-presidente é notório defensor da tortura e da execução de opositores à ditadura civil-militar. Em matéria de direitos humanos, portanto, o bolsonarismo não tem autoridade ética nem moral.

Mas também surgiram críticas em setores de fato comprometidos com o debate sobre o devido processo legal e o estado democrático de direito. Como os integrantes da Defensoria Pública da União (DPU) que defendem réus e investigados pelo 8 de Janeiro sem condições financeiras para bancar uma defesa privada. Para mais detalhes sobre o papel da DPU nos tribunais superiores em defesa dos réus pobres, basta conferir os tuítes e escritos de um defensor sério e independente, Gustavo de Almeida Ribeiro, que milita no STF há anos.

Reparos também surgiram entre profissionais com experiência direta no tema das investigações policiais. Ganhou um curto destaque, que sumiu do noticiário tão rápido quanto apareceu, a crítica levantada pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF), formada por servidores da Polícia Federal.

Desde 2022, pelo menos, os peritos vêm comentando, nos bastidores, sobre aspectos da condução dos inquéritos no STF, em especial a pouca atenção à “prova pericial” prevista no artigo 158 do Código de Processo Penal (CPP). O incômodo aumentou com a normalização de relatórios e até laudos que tratavam de provas terem sido assinados por outros policiais sem a participação dos peritos criminais e sem a confecção de laudos periciais.

Em 6 de outubro de 2023, a coisa desandou quando a APCF divulgou uma nota pública pela qual manifestou “preocupação em relação à análise da PF” sobre as imagens coletadas pelas câmeras do aeroporto Leonardo Da Vinci, na Itália, que teriam documentado uma agressão a Moraes e familiares.

“É preocupante que procedimentos não periciais possam ser recepcionados como se fossem ‘prova pericial’, uma vez que não atendem às premissas legais, como a imparcialidade, suspeição e não ter, obrigatoriamente, qualquer viés de confirmação, que são exigidas dos peritos oficiais de natureza criminal”, dizia a nota.

A nota citou o CPP e as leis 13.407/2014 e 12.030/2009, que “coadunam na imprescindibilidade da produção isenta da prova no processo criminal, por peritos criminais dotados de autonomia técnica, científica e funcional, prerrogativa necessária para assegurar a idoneidade da prova justa e equilibrada das partes”.

A APCF enviou cartas ao STF com esclarecimentos sobre a nota. Em ofício dirigido a Moraes, a entidade elogiou o trabalho “firme e brilhante” do ministro, mas pontuou a necessidade de um laudo pericial com “toda a profundidade e rigor metodológico que a situação merece”.

“Laudo pericial importante até mesmo a título de se afastar eventual nulidade processual, evitando-se que eventuais autores de crimes consigam se eximir de responsabilidades com base na alegação de vícios processuais, qual a ausência de laudo pericial analisando elementos de prova – exigência posicionada com ênfase ainda maior a partir da entrada em vigor da Lei n.º 13.964/2019, que estabeleceu uma disciplina mais rigorosa para a realização das perícias e para a preservação da cadeia de custódia”, diz o ofício remetido a Moraes.

Essa ponderação gerou uma tempestade contra o presidente da APCF, Willy Hauffe Neto. Trata-se de um dos mais experientes e reconhecidos peritos da PF. No órgão desde 2007, formado em ciências contábeis pela Universidade de Brasília (UnB), pós-graduado em gestão pública, é especialista em perícias de incêndios e explosões e professor da Academia Nacional de Polícia (ANP) em criminalística, local de crime e bombas e explosivos.

Hauffe atuou como perito em diversos casos de repercussão nacional, como os assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no Vale do Javari em 2022. Ao longo de todo o governo Bolsonaro, a APCF manteve-se crítica e distanciada da onda golpista dos bolsonaristas. Em 2021, por exemplo, descartou qualquer fraude nas urnas eletrônicas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

“A APCF defende a urna eletrônica e reconhece que se trata de um exitoso projeto de hardware e de software […]. Ressaltamos, por fim, nossa confiança no processo eleitoral, tendo a certeza de que o voto eletrônico trouxe importantes avanços, dentre eles o afastamento dos riscos decorrentes do voto em cédula.”

Em abril e julho de 2022, a associação assinou notas em conjunto com outras entidades a fim de repudiar falas de Bolsonaro sobre eventual cancelamento de um projeto de reestruturação das carreiras que compõem o sistema de segurança pública da União. Sugerir, portanto, que a crítica dos peritos sobre STF-Moraes tenha sido ideologicamente motivada carece de lógica.

Mas a resposta das instituições à nota da APCF sobre o caso na Itália foi a pior possível. Três dias após a divulgação da crítica, a Corregedoria-Geral da PF encaminhou a nota à sua Coordenação-Geral de Assuntos Internos para “análise dos fatos e providências sob a ótica disciplinar”.

Mandou-se intimar Hauffe. Os advogados da APCF primeiro explicaram que a autoria da nota foi da associação, e não do próprio perito. Depois revelaram que, no bojo do inquérito sobre o aeroporto na Itália, chegou a ser feito o pedido de um laudo pericial pelo Setor Técnico-Científico da PF. Contudo, o pedido “terminou aos cuidados de um agente de Polícia Federal”, que “jamais poderia realizar uma perícia”.

Um parecer da Divisão de Procedimentos Disciplinares da Corregedoria afirmou que a nota da APCF “desacredita a investigação criminal e a própria Polícia Federal, comprometendo a credibilidade dela perante o Supremo Tribunal Federal, por ter feito referência nominal a um dos seus ministros [Moraes]”. Foi então determinada a instauração de Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) contra Hauffe “por ter, supostamente, comprometido a credibilidade da Polícia Federal e desacreditado o trabalho investigativo dela perante a sociedade”.

Hauffe teve que ir ao Judiciário. Em dezembro passado, o juiz da 5ª Vara Federal do Distrito Federal, Paulo Ricardo de Souza Cruz, determinou a suspensão do PAD. Ele disse que a instauração da apuração “mostra-se indevida”. “A nota não teria o objetivo de comprometer a credibilidade da Polícia Federal e desacreditar o trabalho investigativo por ela, mas defender o âmbito de atuação dos peritos criminais federais, o que seria uma finalidade óbvia de uma associação desses servidores”, escreveu o magistrado.

Ainda que sobre fatos distintos, a discussão de fundo levantada pelos peritos no ano passado, e devidamente soterrada em Brasília, tem total relação com as dúvidas levantadas pelas recentes reportagens da Folha de S.Paulo. Em uma delas, aparece um juiz instrutor do gabinete de Moraes no STF dizendo ao responsável pelo setor de combate à desinformação no TSE para “usar a criatividade” ao produzir um relatório. O cerne da nota da APCF era refletir sobre qualidade e idoneidade da prova nos autos de um inquérito ou processo. Vamos lembrar as palavrinhas que incomodaram tanto na nota da APCF: imparcialidade, suspeição e viés de confirmação.

No STF, a associação dos peritos participou de audiências durante a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF), relatada pelo ministro Edson Fachin, que questiona a constitucionalidade da política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro, em especial a alta letalidade da atuação policial. Uma das conclusões das conversas no Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (Nupec) e no Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (Nusol), que atuaram de dezembro de 2023 a junho de 2024 diz o seguinte: “A autonomia da perícia técnica é considerada essencial para a redução da letalidade. A eventual responsabilização de excessos apenas pode ser realizada a partir de perícia técnica com isenção”.

Mencionando outra decisão do STF (ADI 2943), recomendações e protocolos internacionais e relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) emitiu, em junho passado, uma resolução (nº 15) pela qual reafirma que “a normatização, operacionalização e execução da cadeia de custódia de vestígios relacionados a ilícitos penais será de responsabilidade do órgão de Perícia Oficial”.

“A prova pericial deverá ser utilizada para instruir a investigação de natureza criminal, necessariamente vinculada a um inquérito policial ou a outro procedimento prescrito em lei”, diz a resolução do CNDH.

Se concordamos que direitos humanos são inegociáveis, e são, não há fins que justifiquem os meios.

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