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Crise de abstinência

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DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

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Não sei quantas vezes me peguei na última semana começando a digitar a URL do Twitter. Já há quase uma década, aquela insólita combinação de “t” mais “w” e a sequência de letrinhas que aparecia automaticamente depois era o lugar mental para onde eu corria para preencher qualquer espaço vazio. Entre uma tarefa e outra, entre editar um texto e outro, uma reunião e outra, eu lançava mão daqueles caracteres. Confesso: às vezes, nem esperava a reunião terminar, ou o filme, ou a conversa durante o jantar, e sem querer me pegava digitando freneticamente a palavra que foi transformada em pó pelo bilionário americano que a comprou, mas que ainda respondia aos comandos do meu teclado. Mergulhava ali, muitas vezes, quem estava comigo tinha que me chamar de volta para o lado de fora: “Ei, estou aqui”.  

Ao digitá-la, abria-se pra mim um mundo cacofônico sobre um fundo preto. Já nos primeiros post, eu distinguia qual era a principal notícia do dia – na verdade, a principal notícia que causava revolta e dividia opiniões; dali, entendia o que as pessoas esperavam que eu soubesse comentar. De que lado – sempre era preciso ter um lado – eu ia estar. Me surpreendia que cada coisa que acontece no mundo real esteja predestinada a referendar uma visão de mundo. Um jovem invadindo escolas pra fazer um massacre? Tinha. Uma intervenção artística com um homem nu? Tinha. Filme novo? Tinha também. 

Assim a máquina ia conformando o meu jeito de ver as coisas, sem muita escolha, e eu ia me deixando guiar pelo algoritmo.

Aprendi muito pouco no Twitter. Não consigo lembrar de uma boa discussão que eu tive, na qual cheguei a alguma conclusão inesperada, compreendi algum aspecto novo de um dilema ético ou social. Na maior parte das vezes, era exaustivo: entendia como cada pequeno acontecimento do lado de cá da tela poderia ser interpretado de acordo com um grupo – o meu, o da democracia, o do progressismo – ou pelo outro, e para isso, apenas servia. 

Claro, na época do auge dos “fios” eu aprendi coisas, sim. Havia gente muito culta e cheia de informações com quem eu jamais sentei a mesa de um bar, explicando assuntos complexos de maneira clara, e elas me ajudaram a compreender os lances políticos mais nebulosos, em especial nos últimos cinco anos. Conheci pelo Twitter pessoas que viraram referência para mim, ao tratar da corrosão da democracia pelos algoritmos ou defender incansavelmente a ciência durante a pandemia. Mas abaixo de cada post, em especial aqueles mais “virais”, os que mais davam certo, portanto, a conversa era toda violenta, em dois ou três tweets a coisa descambava para a ignorância, o machismo, o ódio mordaz.

Se esqueci quase tudo o que eu li por lá, ficaram aqui grudados na memória alguns dos insultos que eu recebi. Um senhor me disse que eu precisava de um homem para chupar, uma mulher me disse que eu sou uma jumenta; recebi xingamentos em inglês, de “moron” a “Soro’s puppet”, e assim fui ficando tão angustiada em momentos-chave da nossa história recente, talvez em nenhum mais do que a campanha eleitoral de 2022 pelo tom que eu lia… Que decidi, uma manhã, pegar o trem para entender se o Brasil estava mesmo em pé de guerra. 

Não estava. No trem de Itapevi para a Barra Funda, um grupo de jovens rappers entrou no vagão – faltavam apenas alguns dias para o segundo turno – e começou a entoar rimas defendendo Lula. Uns aplaudiram, algumas pessoas fizeram cara feia, um senhor do meu lado murmurou: “Eu voto em Bolsonaro”, sorri pra ele e disse que cada um tinha sua opinião. O trem seguiu. 

Quando abracei o Twitter de vez, eu já tinha a consciência de que aquilo ali era um terreno minado onde deveria me expor o menos possível. Já o via como ferramenta para espalhar o bom jornalismo e ponto. Vinha, machucada, de anos de decepções trazidas pelo Facebook, rede à qual eu cheguei de fato a me afeiçoar. 

O Facebook foi minha rede por outros sete, oito anos, mas quando nele cheguei ainda era um lugar onde você reencontrava amigos, postava fotos pessoais. Era como um Orkut melhorado – sim, eu sou da era do Orkut – com mais funcionalidades, mas um ambiente seguro, uma praça onde se podia ver o que as pessoas queridas estavam fazendo. Como eu já contei aqui na coluna, o Facebook foi fundamental quando lançamos a Agência Pública, pois o alcance era enorme, quem te seguia de fato conseguia ler seu conteúdo, e havia debates saudáveis, conversas verdadeiras. 

Com a abertura das ações, aquele espaço tão meu foi virando shopping, e eu percebi, talvez tarde demais, que seria impossível separar os primeiros anos – aqueles nos quais eu ainda postava fotos pessoais, com amigos – do terreno de guerra que ele tinha se tornado. Fechei o Facebook há uns quatro anos, depois de ter baixado todas as minhas postagens, com um pouco de dor no coração porque intuo que nunca vou abrir aquele enorme documento zipado. 

Nunca me dei com o Instagram, rede onde as pessoas gostam de se ver e de serem vistas – sentimento ao qual eu nunca me afiliei – e que conseguiu transformar até aquela sensação inicial do Facebook de encontrar os amigos em plástico. 

Já do Twitter, a que conseguiu acorrentar-me, nem me despedi; não fiz um plano de saída quando Alexandre de Moraes deu 48 horas para ele sair do ar. Não chamei ninguém pra me seguir em outra conta, não baixei meus arquivos, não me despedi daquela máquina que era tão presente em minha rotina.   

Então me pego aqui, escrevendo em vão as letrinhas mortas da URL, tentando ter ânimo para fazer conteúdo para ainda mais uma empresa americana, o Bluesky, com uma preguiça gigante. Penso, claro, no impacto profissional que terá eu deixar de me comunicar com 27 mil seguidores, não só para mim, mas para a Pública, retuitadora oficial que eu era, diligente em ajudar a espalhar o trabalho dessa equipe brilhante. Penso, depois, que na era da internet plataformizada de fato nada nos pertence: um bilionário certo dia decidiu, por não concordar com as decisões da corte mais alta de um país, que não ia mais obedecer a elas, e de repente eu fico sem dez anos do meu próprio trabalho, suor do meu rosto. 

Mas, ao fim melancólico, alia-se um sentimento um pouco difuso, um pouco traquina, que cresce com passar dos dias, quando eu reencontro aqui e ali uma nesga do mundo que eu tinha perdido; quando a gata senta sobre o meu teclado, não tenho que correr para espantá-la, na varanda de minha casa agora tenho tempo pra ver cair as jabuticabas que amadurecem – e ouvi-las, vejam que maravilha – e os grupo de araras que está fazendo algazarra aqui fora, consigo acompanhá-las em todo o seu trajeto do oeste para o leste, até o perder de vista. Claro, somos jornalistas, produzimos muito, e além do mais aqui de São Paulo, onde o capitalismo dita os rumos de nossas vidas, e a máquina não pode parar – mas eu vejo talvez uma pequena luzinha no fim do túnel que me diz: não precisa a todo minuto e a todo segundo preenchê-lo com uma rede social

Quem sabe, leitor, seja esta a primeira vez nos últimos 15 anos – lá se foi um terço da minha vida – que eu vou deixar de ter uma rede que me acorrente ao tempo do algoritmo?   

Quem sabe…

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