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A tentativa do Judiciário de RO de proteger a reserva mais desmatada da Amazônia

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DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

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Em dezembro passado, você ficou sabendo em primeira mão aqui pela Agência Pública, em reportagem feita em parceria com o jornalista Fabiano Maisonnave, da agência Associated Press, que a JBS e outros três frigoríficos eram réus em processos judiciais que buscavam indenizações de dezenas de milhões de reais e outras medidas a fim de reparar danos ambientais cometidos na Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná.

Localizada em Rondônia, entre os municípios de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré, é a unidade de conservação proporcionalmente mais desmatada em toda a Amazônia brasileira.

A notícia passou quase em branco pelos veículos tradicionais da imprensa no Brasil, embora tenha repercutido em diversos meios de comunicação mundo afora, como na versão online do jornal The New York Times. Eram, na ocasião, 17 ações civis públicas, hoje já são cerca de 40.

Na Resex, são criadas ilegalmente, há anos, mas com uma explosão verificada durante o governo de Jair Bolsonaro, milhares e milhares de cabeças de gado (216 mil, segundo a estimativa mais recente). Grileiros, madeireiros, pecuaristas, uma enxurrada de invasores devastou a reserva. Estima-se que cerca de 80% dos 197 mil hectares da reserva viraram fumaça nas últimas poucas décadas

Os processos noticiados pela Pública em dezembro eram (e são) especiais por várias razões: a) foram movidos pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE) de Rondônia, ou seja, um braço do próprio governo cujo governador é um declarado bolsonarista, em um dos estados mais bolsonaristas do país; b) as ações miram não apenas os destruidores da mata em si, mas também um grupo de milionários frigoríficos que teria se beneficiado dessa destruição; c) de forma surpreendente, a PGE conseguiu apreender Guias de Transporte Animal (GTAs) que indicavam a própria Resex como local de criação do rebanho comercializado, uma rara confissão, por escrito, de um ilícito muitas vezes difícil de ser comprovado, devido a operações de compra e venda simuladas que “lavam” a origem verdadeira do gado.

Pois bem, o tempo passou e, na semana passada, a juíza da 1ª Vara de Fazenda Pública de Porto Velho (RO) Inês Moreira da Costa condenou dois frigoríficos (Distriboi e Irmãos Gonçalves), dois “arrendatários” e um “ocupante” a tomar uma série de medidas, entre as quais a desocupação da Resex, a demolição de todas as edificações erguidas por eles na reserva, a retirada de todo o gado, ao pagamento de cerca de R$ 4,2 milhões em três tipos de indenização e a implementação de um projeto de restauração da área degradada.

Um laudo técnico apontou que, somente em relação a esse caso, foi destruída dentro da Resex uma área equivalente a 214 campos de futebol.

Os dois frigoríficos agora condenados haviam sido mencionados na reportagem da Pública em dezembro. O Irmãos Gonçalves, também conhecido como Frigon, tem uma grande influência econômica em Rondônia, com um capital social declarado de R$ 519 milhões. Um de seus donos declarou à Justiça Eleitoral em 2022 uma fortuna pessoal de R$ 351 milhões (o oitavo candidato mais rico naquela disputa em todo o país, segundo um levantamento do portal UOL).

Outro membro da família do Frigon é o atual vice-governador de Rondônia, Sérgio Gonçalves (União Brasil), que acumula o cargo de secretário estadual de Desenvolvimento Econômico. Um irmão seu, José Gonçalves Silva Júnior, é o secretário-chefe da Casa Civil do governador Marcos Rocha (PL).

Um jornalista de Rondônia já descreveu Silva Júnior como “fiel escudeiro de Marcos Rocha e principal cérebro do governo na última campanha eleitoral”.

As conexões políticas e o poderio econômico dos empresários reforçam a atenção que se deve ter sobre o grupo de procuradores do estado de Rondônia que tiveram a iniciativa de mover as ações. A petição inicial do processo foi subscrita pelos procuradores Matheus Carvalho Dantas, Júlia Gruppioni Passos, Laís de Freitas Caetano, Sérgio Fernandes de Abreu Júnior e Antônio Isac Nunes Cavalcante de Astrê.

Em 2020, um relatório da Polícia Federal (PF) apontou que um grupo suspeito de grilar 64 mil hectares dentro de outra unidade de conservação em Rondônia e supostamente ligado a um deputado estadual do MDB chegou a cogitar matar o procurador Matheus Carvalho Dantas. Ele foi o responsável por emitir pareceres contrários à grilagem.

Segundo o relatório da PF revelado pela Folha de S.Paulo, deu-se o seguinte diálogo entre o deputado e um fazendeiro:

– Passar fogo?

– Mandar o Matheus pro inferno.

– Vamos atacar ele, ué. Porque cê não falou.

Ameaça como essa levantada pela PF nos leva a refletir sobre eventuais pressões às quais esses procuradores estão submetidos na condição de servidores do governo de Rondônia que atuam em defesa do futuro das unidades de conservação no estado.

Em sua defesa no processo, o Frigon sugeriu que os procuradores agem à revelia do governador do estado ao mencionar a suposta exigência de “um documento assinado pelo governador do Estado de Rondônia afirmando a sua ciência e concordância com a propositura da presente ação”.

“Ante a abrangência e os efeitos econômicos e sociais que o presente feito possui, exige-se que haja um trabalho cuidadoso, meticuloso e acima de tudo, respeitoso com todas as partes envolvidas. Os reflexos da presente demanda ultrapassam questões mínimas, o que, portanto, exige o conhecimento e autorização por parte do Governo do Estado de Rondônia”, diz a petição do frigorífico.

Na réplica à contestação, as procuradoras Gruppioni e Caetano explicaram que a missão da PGE “não se resume à ‘defesa jurídica do Poder Executivo’”, mas sim “exercer a representação judicial e a consultoria jurídica do estado de Rondônia, isto é, do próprio ente federativo, pessoa jurídica de direito público interno, o que abrange os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário”. Disseram ainda que, ao contrário do alegado pela empresa, “não há necessidade de autorização” do governador para que possa ajuizar ações civis públicas, citando a Lei da Ação Civil Pública (nº 7.374/1985), a Lei Orgânica da PGE de Rondônia (Lei Complementar nº 620/2011) e a Constituição de 1988.

O interesse da PGE – argumentaram as procuradoras – “não pode se confundir com o interesse pessoal do agente político que chefia um dos Poderes dessa unidade federativa”.

“Para ser mais claro, a PGE exerce, por definição, uma advocacia de Estado, não de governo. Isso significa que sua função é representar e defender os interesses permanentes do Estado, que transcendem mandatos e políticas governamentais temporárias.”

Em sua defesa, o frigorífico Distriboi reconheceu ter adquirido gado da mesma “fazenda” apontada pela PGE – na verdade, uma ocupação ilegal dentro da Resex –, mas argumentou que “a atividade agropecuária ali exercida pelos proprietários encontrava total respaldo pelo Estado de Rondônia, eis que este não apenas permitiu a antropização da localidade, como praticou diversos atos oficiais que fomentaram o desenvolvimento das atividades sociais e econômicas na região”.

Diz a defesa ainda que a agência estadual de defesa sanitária, o Idaron, por exemplo, “realizou o cadastro de semoventes e dos produtores/proprietários, envidou programas oficiais de vacinação dos rebanhos e, mais, emitiu as Guias de Transporte Animal (GTAs)”.

Com tal manifestação, o frigorífico confirma o papel ativo do governo do Estado, ao longo dos anos, na devastação da reserva. A empresa mencionou ainda “benfeitorias públicas, como estradas, energia elétrica e escolas, proporcionadas pelo próprio estado de Rondônia”.

Em sua réplica, as procuradoras do estado explicaram que o Idaron é a agência responsável por “eliminar o risco potencial de disseminação de doenças e pragas” em todo o rebanho de Rondônia, “independentemente de onde tais animais estejam localizados”, e que toda a movimentação de gado dentro da Resex foi comunicada pelo Idaron, mediante um termo de acordo, ao órgão estadual encarregado da fiscalização e repressão aos crimes ambientais. O governo, inclusive com apoio da Polícia Militar, realizou diversas operações dentro da Resex que resultaram em apreensões, multas e tentativas de remoção dos invasores.

“As atividades econômicas atualmente desenvolvidas no interior da Resex são indiscutivelmente ilícitas. Logo, é impossível querer legitimar a continuidade das atividades ilícitas – e até criminosas – sob o argumento de que geram arrecadação tributária para o município”, escreveram as procuradoras.

A juíza Inês Costa lembrou, em sua decisão condenatória, que uma reserva extrativista “é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte”. Uma Resex tem como “objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade” (artigo 18 da Lei 9.985/00).

A juíza apontou que, no caso da Jaci-Paraná, “a lei determina a sua preservação, admitindo apenas o seu uso sustentável, o que não ocorreu”.

Todos os réus, por suposto, têm direito a recurso, a princípio no Tribunal de Justiça de Rondônia. Isso quer dizer que, apesar da recente decisão, ainda não se sabe o destino dos processos sobre a Resex.

Uma hipótese é que deem rigorosamente em nada, o que não seria nenhuma surpresa num país em que é comum o Judiciário fazer com uma mão e desfazer com a outra. No esperado longo percurso judicial, sempre haverá o recurso aos tribunais superiores de Brasília. A única segurança jurídica hoje em dia em Brasília é saber que não há segurança jurídica nenhuma.

Cabe ao jornalismo acompanhar, passo a passo, o que o Judiciário brasileiro vai fazer a respeito de uma das unidades de conservação mais impiedosamente destruídas da Amazônia. O primeiro passo foi dado, mas não sabemos se vai virar um tropeção.

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