Em junho deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro deu início a um protocolo de níveis de calor. Com cinco escalas, a medida é utilizada para orientar a população a evitar atividades externas e procurar por pontos de refrescamento em dias com alta temperatura e umidade. O plano prevê até o cancelamento de eventos com grandes aglomerações.
Criado em resposta às sucessivas ondas de calor que vêm atingindo o Rio – e que se tornaram mais frequentes nos últimos anos –, o protocolo, porém, ainda não foi posto à prova. Nenhum evento chegou a ser cancelado por causa do calor porque a cidade não alcançou os níveis mais críticos desde que foi lançado.
Para especialistas, a medida é bem-vinda, mas talvez tenha demorado demais para ser implementada. É o que avalia Eduardo Manoel Rosa Bulhões, professor do curso de geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O docente relembra a canção de Fernanda Abreu Rio 40 graus, lançada em 1992. Para ele, embora seja uma metáfora ao estilo de vida efervescente do carioca, a música já alertava que a cidade do Rio de Janeiro enfrentava altas temperaturas no verão há mais de 30 anos.
“A gente já conhece isso [o calor extremo]. O Rio de Janeiro tem centros de pesquisa, tem informação, tem dados. Mas uma parte das nossas iniciativas, infelizmente, é motivada depois que acontece um caso mais grave”, critica o professor.
Ele se refere à morte de Ana Clara Benevides Machado, de 23 anos, durante o show da cantora estadunidense Taylor Swift, em novembro do ano passado. Na data, a cidade registrou sensação térmica de 60 °C.
De acordo com o professor Marcos Freitas, do Instituto Virtual Internacional de Mudanças Globais (Ivig), da Coppe/UFRJ, as temperaturas têm ficado até 5 ºC mais altas nos picos de calor nos últimos dez anos no Rio, na comparação com a década passada. “Os extremos do clima estão se acelerando”, alerta ele.
O protocolo leva em conta o índice de calor – que é calculado a partir da umidade relativa do ar e a temperatura – para mudar os níveis em que se encontra a cidade. A partir desse resultado, é estabelecida quais serão as ações adotadas.
Por que isso importa?
No nível 1 do protocolo, a cidade do Rio de Janeiro continua com a sua rotina normal, pois não há riscos à saúde da população.
Quando o nível é classificado em 2 ou 3, com índices de calor que variam de 36 °C a 40 °C, o Centro de Operações Rio (COR), órgão operacional da prefeitura que reúne dezenas de secretarias municipais e estaduais, passa a emitir alertas sobre riscos de exposição solar.
Isso aconteceu pela primeira vez no dia 26 de setembro, quando a temperatura máxima chegou aos 38 °C e a umidade relativa do ar ficou entre 21% e 30%. Nesse cenário, a cidade do Rio de Janeiro foi classificada com o nível de calor 2 (NC2).
De acordo com o protocolo, no NC2 o cotidiano do carioca não chega a ser afetado, mas é necessário informar a população sobre possíveis riscos de exposição ao calor, por meio de redes sociais, imprensa, aplicativo do COR e canais externos de divulgação.
“Não é só o índice de calor que importa, mas o tempo que a população vai estar exposta àquele calor”, explica Gislani Mateus, superintendente de vigilância e saúde da Secretaria Municipal de Saúde (SMS) do Rio.
Somente a partir do nível 4, quando o índice de calor fica entre 40 °C e 44 °C, estão previstos cancelamento ou reagendamento de eventos e orientações para que a população busque por áreas mais frescas, de acordo com o COR. “Neste nível também poderá haver a suspensão de atividades realizadas em áreas externas para transferência para espaços sombreados ou internos.”
Um levantamento feito pela SMS sobre as condições climáticas do Rio nos últimos 11 anos observou que a cidade seria classificada com os níveis de calor NC4 e NC5 em sete ocasiões. Todas elas ocorreram entre novembro de 2023 e janeiro de 2024, o que indica que a cidade tem enfrentado ondas de calor extremo com mais frequência e em curtos intervalos.
Uma dessas ocasiões foi justamente durante o show de Taylor Swift, quando Ana Clara Benevides morreu.
Se estivesse em vigor, protocolo teria cancelado shows da Taylor Swift no Rio
Segundo o laudo técnico do Instituto Médico Legal (IML) do Rio de Janeiro, a causa da morte de Benevides foi por “exaustão térmica por exposição difusa ao calor”, ou seja, o estado de estresse corporal em virtude das altas temperaturas que comprometem o funcionamento do corpo.
Segundo Marcus Belchior, 47 anos, chefe executivo do COR, se o protocolo estivesse em vigor desde o ano passado, o nível 4 – penúltimo estágio – teria sido aplicado na semana dos shows de Taylor Swift.
“[No dia seguinte à morte da jovem] Quem cancelou o show foi a cantora. No segundo dia, o prefeito ia meter a mão no telefone e falar: ‘Não vou fazer porque eu não quero’. Se ele tomasse essa ação, seria uma ação extremamente política. Hoje nós temos um protocolo [para justificar a medida]”, afirma Belchior.
“Poderia ter sido evitada”, argumenta Bulhões sobre a morte da jovem, caso o protocolo de níveis de calor estivesse em vigor naquela época. “Não que as pessoas vão deixar de morrer por causa disso, porque tem gente que, mesmo com nível de alerta, mesmo com comunicação que a prefeitura vai fazer, vai se expor ao risco”, complementa.
“A gente, de fato, ainda não passou por um teste de fogo, digamos assim, sobre essa política pública. Mas, no papel, ela parece bem coerente”, avalia.
No dia 12 de setembro deste ano, às vésperas do Rock in Rio, a capital fluminense registrou 41,1°C de temperatura, a mais alta do inverno de 2024. No entanto, a classificação de risco não foi alterada e alertas não foram emitidos à população porque a umidade relativa do ar estava baixa, o que não causaria o desconforto térmico definido pelo protocolo de calor.
Como parte das medidas aplicadas após a morte da jovem na fila do show de Taylor Swift, a prefeitura do Rio de Janeiro obrigou grandes eventos a disponibilizar água gratuitamente ao público, o que aconteceu durante o Rock in Rio.
População enfrenta forte ondas de calor extremo cada vez mais frequentes no Rio de Janeiro
Protocolo não é regionalizado
Uma das críticas feitas ao protocolo é que ele não é regionalizado e considera um índice de calor único para a cidade inteira, o que pode levar a uma distorção, já que os bairros registram condições muito diferentes. Na zona oeste carioca, Guaratiba costuma registrar as maiores sensações térmicas da cidade. Em março deste ano, a marca foi de 62,3 °C, segundo o Alerta Rio. A Agência Pública ouviu professores e alunos de escolas na região, que dizem se sentir dentro de uma “sauna”.
“Se lá [em Guaratiba] bateu 60 °C [de sensação térmica], em outras regiões da cidade ficou entre 45 °C e 50 °C”, afirma Marcos Freitas, da Coppe/UFRJ.
Pela amplitude térmica, em função da geografia da cidade, Bulhões avalia que o protocolo deveria ser analisado regionalmente, uma vez que o Rio de Janeiro tem território extenso e pode sofrer influências climáticas diferentes.
“Algumas áreas da cidade têm um tipo de circulação de vento e outras áreas, mais centrais, têm outro tipo. E existem as ilhas de calor”, comenta.
Segundo Bulhões, a complexidade geográfica do Rio de Janeiro é um desafio, também para a implementação dos protocolos regionalizados. “O sítio urbano é recortado por dois maciços costeiros e há uma alternância entre áreas à beira-mar, áreas em encostas, áreas junto à baixadas litorâneas”, avalia.
“Talvez seja necessário que os protocolos climáticos atuais e futuros sejam regionalizados, mas para tal há dependência de uma base de dados e informações de resolução refinada. No caso do protocolo de níveis de calor, por exemplo, seriam necessários equipamentos e modelos computacionais que deem conta dessa complexidade. Não tenho muitas dúvidas que a cidade pode evoluir para isso”, diz Bulhões.
Belchior explica que hoje não tem como estabelecer um nível de calor para apenas uma região. “É uma troca automatizada, que se dá em todo o território da cidade.”
A superintendente em vigilância e saúde da SMS, Gislani Mateus, afirma, no entanto, que a prefeitura e outros órgãos de monitoramento climático têm pontos de coleta de dados espalhados pelo município e que “tem, sim, uma proposta [sendo analisada para a política tornar-se regionalizada]”.
Rio registra segunda maior seca em dez anos
No dia 12 de setembro deste ano, em Santa Cruz, na zona oeste do Rio, a umidade relativa do ar chegou a 10%, índice abaixo dos parâmetros médios de regiões áridas como o deserto do Saara, que gira em torno de 12%.
O fenômeno é incomum para o Rio de Janeiro, que é uma cidade litorânea e rodeada pela Mata Atlântica. Essa foi a segunda vez, em dez anos, que os índices ficaram tão baixos na capital fluminense, de acordo com o COR. A outra ocasião foi em 18 de setembro de 2023, quando a umidade relativa do ar ficou também na casa dos 10%.
A mudança impõe prejuízos para a qualidade do ar, que tem atingido índices baixos nos últimos anos. “A gente não tinha isso antes no Rio de Janeiro. Minha aposta é que a gente vai começar a ter outros invernos secos”, estima Bulhões, que defende que seja criado também um protocolo para a qualidade do ar.
Belchior disse à Pública que o fenômeno atípico gerou um alerta na equipe de meteorologistas do COR, que passou a estudar meios de monitorar e planejar protocolos para a baixa umidade.
“Nós somos uma cidade litorânea, a gente nunca sofreu isso na vida”, afirma. “É um sinal de que está acontecendo algo no planeta e que precisamos nos aprofundar no tema para o caso de isso ocorrer novamente”, complementa.
Arborização da cidade entra na pauta dos principais candidatos
Como forma de amenizar as altas temperaturas que castigam a cidade do Rio de Janeiro, os candidatos à prefeitura têm, em sua maioria, investido em propostas de arborização dos bairros.
“Para a cidade ficar mais fresca, menos agressiva em temperatura, ela tem que estar mais verde. Quanto menos verde, maior o efeito de ilha de calor”, explica Marcos Freitas.
Para a zona norte da cidade, o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes (PSD) – que é o responsável pela implementação do protocolo de calor –, propõe em seu plano de governo o projeto “ZN Verde”, que prevê o plantio de mudas pelos bairros mais quentes da região.
Paes promete também instalar mais sirenes pelas comunidades do Rio de Janeiro para avisar os moradores em casos de riscos de enchentes e deslizamentos de terra, além de criar um programa de reassentamento de populações ribeirinhas.
O concorrente Alexandre Ramagem (PL), deputado federal e ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) do governo de Jair Bolsonaro, também promete áreas verdes.
“É necessário implementar programas de reflorestamento nas áreas degradadas, especialmente nas encostas da cidade e nas margens de rios, utilizando espécies nativas. A ampliação da criação e manutenção de parques e áreas verdes na cidade é fundamental, garantindo que sejam espaços acessíveis e atrativos para a população, promovendo a conservação da biodiversidade”, escreveu em seu plano de governo.
O candidato do PSOL, Tarcísio Motta, também sugere como política municipal de redução dos impactos das ondas de calor a arborização da cidade, começando pelas regiões mais quentes do Rio. O projeto-base usado na proposta de campanha do psolista é o Plano Diretor de Arborização Urbana (PDAU), criado em 2015, que ele sugere que seja revisado.