Ervas para induzir ao aborto. Comércio ilegal de medicamentos entre estados. Misoprostol disfarçado de cartão de visita e produzido em laboratório caseiro para venda online. Risco de morte para gestantes causado por infecção generalizada. Aborto negado em caso de estupro e incesto. Poderia ser no Brasil, mas não é.
No ano da eleição presidencial dos Estados Unidos, é este o cenário no estado ultraconservador do Texas, para onde Kamala Harris viajou no fim de outubro para fazer um de seus maiores comícios de campanha e receber o apoio oficial de Beyoncé, cidadã texana ilustre. O Texas é um dos bastiões do conservadorismo e da extrema direita. No evento, na cidade de Houston, a candidata democrata usou o cenário local alarmante para amplificar sua mensagem às mulheres de todo o país: uma vitória de Donald Trump, nas eleições do dia 5 de novembro, coloca em risco os direitos reprodutivos das mulheres em todo o país. O que acontece hoje no Texas pode se tornar realidade nos demais estados.
“O Texas é o marco zero dos EUA para a proibição extrema ao aborto”, disse Kamala, no estádio lotado na maior cidade do estado e quarta maior dos país. Como tudo é superlativo no Texas – é também o segundo mais rico do país –, a estratégia de Kamala foi fazer sua mensagem reverberar para o resto dos EUA, já que os republicanos (partido de Trump) vencem as eleições ali desde 1994.
Em meio a cerca de 30 mil de pessoas, boa parte delas mulheres negras que se acotovelavam para ver Kamala e Beyoncé, a parteira Rowan Twosisters, voluntária do Partido Democrata, temia as possíveis consequências da eleição de Trump em um estado com leis já draconianas, que impedem mulheres de abortar mesmo em casos de estupro e incesto.
“Já tem muita gente em risco e haverá ainda mais. Caso Trump seja eleito, mulheres vão morrer. Meninas que são estupradas vão morrer. Fazer um parto fora do hospital será um desafio tão grande, porque não teremos as medicações que a gente precisa”, disse.
Mulheres recorrem à compra clandestina para conseguirem abortar
Dias antes do comício, a uma hora de Houston, a professora Dulce* comprou por 50 dólares (cerca de R$ 256) comprimidos misoprostol e mifepristona para interromper uma gravidez de sete semanas. Se tivesse buscado os serviços de saúde locais, ela não teria conseguido o procedimento.
Dulce abortou em casa, na cidade universitária de College Station, com uma amiga presente. “Foi horrível”, foi só o que ela conseguiu dizer, dois dias após o aborto. Os comprimidos chegaram à sua residência pelos correios. Uma pessoa fez a compra em outro estado e mandou para ela, em nome de um destinatário fictício.
Antes de tomar os medicamentos, Dulce não quis buscar organizações que oferecem ajuda e acompanhamento online. Ela temia que seus dados fossem rastreados e ela, descoberta pelas autoridades locais.
Dulce é uma mulher latina que nasceu no Texas, na fronteira com o México, tem dois filhos pequenos. Ela é mãe solo. College Station, cidade onde mora, é a sede da maior universidade pública do país, a Texas A&M, com 70 mil alunos, e em cujo campus está enterrado o corpo do ex-presidente George Bush. Além de majoritariamente branca, a universidade é altamente militarizada e conta com um corpo próprio de cadetes.
Proibição em casos de estupro e incesto
O Texas é o segundo maior estado dos EUA em extensão e proíbe o aborto em praticamente qualquer circunstância. O procedimento só é autorizado até seis semanas de gestação, quando muitas mulheres ainda não sabem que estão grávidas. A legislação local é uma das mais restritas dos EUA e é conhecida como a “Lei do Batimento Cardíaco”, já que, segundo os legisladores texanos, na sexta semana seria possível detectar o batimento.
A medida foi aprovada pela assembleia local em 2021, um ano antes de a Suprema Corte dos EUA mudar seu entendimento do julgamento do caso Roe vs. Wade, sentença que garantiu o direito ao aborto no país por 50 anos. As proibições são tão restritas, que são chamadas de “banimento” pela imprensa local. Não há exceções nem para casos de estupro e incesto.
A lei tem mais uma dose de perversidade: qualquer cidadão, mesmo não relacionado à gestante ou à equipe médica, está autorizado a processar planos de saúde, hospitais ou ou qualquer pessoa que ajude na realização de um aborto.
No Texas, o procedimento é autorizado apenas em casos extremos de risco de vida para a gestante. Mas conseguir esse diagnóstico já quase levou mulheres à morte.
“O Texas é um dos estados onde é potencializado este extremismo do uso de políticas criminais e do uso moral do acesso ao aborto para perseguir as mulheres, inclusive em situações-limite, de risco de vida e de má-formação fetal”, diz Debora Diniz, pesquisadora e cofundadora da organização Anis: Instituto de Bioética.
Ela acompanha de perto as eleições no país, onde mora, e observa uma inversão geopolítica no aprendizado sobre direitos reprodutivos desde a decisão da Suprema Corte dos EUA: “Perguntas do passado, como ‘O que nós, do Sul, podemos aprender com os EUA?’, foram reviradas. Agora, a gente pergunta: ‘O que o Texas pode aprender com o Brasil? O que o Texas pode aprender com a longa luta das mulheres argentinas?’”.
No limite da morte
Ondrea Lintz subiu ao palco do comício de Kamala para contar como sobreviveu após ter os direitos reprodutivos negados depois de ter perdido sua bebê. Grávida de 16 semanas, ela teve perda total de líquido amniótico e soube que a filha não teria chances de sobreviver.
Com risco de sepsemia, ela teve os direitos reprodutivos negados no hospital e não teve acesso aos medicamentos para indução do aborto. Como os médicos não detectaram risco de vida para Ondrea, ela teve que esperar a filha morrer dentro do útero. Foi quando a infecção veio e quase a matou: “Depois de enterrar a minha filha, eu tive que lutar pra sobreviver, porque estava com uma infecção generalizada. Então nem mesmo consegui processar o meu luto”.
O caso de Ondrea Lintz aconteceu em 2022, depois de a Suprema Corte ter derrubado a decisão que permitia o aborto no país. “Se estas leis continuarem a serem aprovadas, mais mulheres podem morrer”, disse Ondrea no palco.
Com uma cicatriz imensa na barriga, causada pela operação de urgência à qual teve que se submeter por causa da infecção generalizada, Ondrea é uma das mulheres que aparecem em anúncios de Kamala sobre direitos reprodutivos. A série de vídeos, com histórias impactantes relacionadas às restrições, é uma das últimas e mais diretas investidas de Kamala na reta final da eleição.
A depender do resultado das eleições, Debora Diniz avalia que a campanha de Kamala mostrou que, sim, é possível falar de aborto na política institucional e que a discussão sobre o assunto pode mudar em caso de vitória da candidata.
“Na política brasileira, os direitos reprodutivos são usados como forma de intimidação, perseguição e silenciamento. Já Kamala trouxe o assunto para o debate como uma bandeira de igualdade, democracia, cidadania, de não tortura e não sofrimento. É muito importante que o que aconteceu nos EUA seja um aprendizado e uma forma de fazer política.”
“Estoquem medicamentos em casa”, alerta parteira, caso Trump vença
Assim como no Brasil e em outros países onde o aborto é permitido em apenas alguns casos, a parteira Rowan Twosisters e outras mulheres lançam mão de recursos menos seguros para ajudar mulheres.
“Uma gestante de oito semanas me procurou porque o feto parou de se desenvolver. O hospital se recusou a usar medicamentos que poderiam ajudá-la no aborto espontâneo e também se negou a fazer uma curetagem, porque achou que isso poderia configurar um aborto desnecessário. Ela teve que esperar que o corpo expelisse, mas ela começou a ter risco de sepsemia. Então usamos ervas para remover o que havia. Mas nem sempre elas funcionam.”
Rowan conta que a mulher continuou com exames positivos para gravidez: “Eu não sabia o que fazer quando os exames seguiam dando positivo! Sou apenas uma parteira, que trabalha em cenários de baixo risco. Não posso lidar com essas situações!”.
Voluntária do Partido Democrata, Rowan revela a sugestão que tem dado a algumas texanas que buscam por ajuda: “Estou aconselhando as pessoas a estocarem os medicamentos abortivos que conseguimos comprar em outros estados, porque não sabemos o que vai acontecer depois de 5 de novembro”.
Ela lembra que o misoprostol não é usado apenas para aborto, mas também para controlar hemorragias no pós-parto, portanto, a necessidade do medicamento vai além da interrupção da gravidez e pode garantir a sobrevivência da gestante: “Muitas vezes os bebês nascem e a gente precisa dos compridos para parar o sangramento da gestante e concluir o parto de uma forma segura”.
Ao responder sobre o que a vitória de Trump pode significar para ela, a parteira não se conteve e chorou: “Essa eleição tem que dar certo para a gente. Eu sou gay, sou uma parteira queer. Eu não estou segura, minha mulher não está segura, meus filhos não estão seguros. A única coisa que tenho a meu favor é que sou branca. Mas quem vai se importar com uma pessoa como eu?”.
No estado, o coletivo anarquista Four Vinegars Collective ensina a produzir misoprostol em casa e colocar a substância no formato de cartões de visita, para evitar que sejam confiscados. Parte das instruções para o processo de manufatura está disponível na internet, em vídeos e cartões de instrução.
No comício de Kamala, telões com os dizeres “Vote pela Liberdade Reprodutiva” e “Acredite nas Mulheres” estavam espalhados pelo estádio. O apelo da vice-presidente era também para que os homens ouvissem suas irmãs, esposas, filhas e demais mulheres ao seu redor. Nos EUA, assim como no Brasil, a diferença de intenção de voto entre homens e mulheres é significativa.
Segundo pesquisa da rede de televisão CBS, divulgada uma semana antes da eleição, 55% delas demonstram preferência por Kamala, enquanto 54% dos homens afirmam que devem votar em Trump. Nos EUA, o voto não é obrigatório.
Durante o discurso da vice-presidente, um homem branco de cabeça raspada e barba longa, com ares de supremacista branco, foi retirado pelos seguranças durante uma briga com um homem negro. Ele usava uma camisa que dizia “Deem fetos de aborto para Kamala”.