Comunidades afrodescendentes da América Latina estão perto de um reconhecimento histórico. Pela primeira vez nas negociações globais sobre preservação ambiental elas podem ter declarado, oficialmente, seu papel para a conservação da biodiversidade – a exemplo do que já acontece para os povos indígenas.
Para organizações quilombolas e afrodescendentes, o reconhecimento representaria um passo importante na proteção, pelo direito internacional, dos conhecimentos, práticas e territórios tradicionais dessa população, que soma mais de 153 milhões de pessoas na América Latina e no Caribe.
A Colômbia, em aliança com o Brasil, tem liderado o movimento para que povos afrodescendentes sejam explicitamente mencionados na resolução da 16ª edição da Conferência das Partes sobre Diversidade Biológica, a COP16, que acontece na cidade colombiana de Cali até o dia 1º de novembro.
A conferência reúne os países signatários da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (ONU), que, em 1992, definiu a necessidade de conservação de espécies e ecossistemas ao redor do mundo. Um dos artigos da convenção estabeleceu que os países devem respeitar, preservar e manter os conhecimentos e práticas de “comunidades indígenas e locais” relevantes para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade.
“Foi o primeiro dispositivo de direito internacional que reconheceu a importância do conhecimento desses povos para a conservação – algo que todo mundo sabe hoje, mas que não era claro na época”, explica a bióloga Nurit Bensusan, pesquisadora do Observatório das Economias da Sociobiodiversidade.
“Esse artigo abriu uma brecha para outras conquistas dessas comunidades, porque já mencionava o consentimento prévio [em relação a políticas públicas que afetem os territórios] e a repartição de benefícios [econômicos]”, diz.
O debate em andamento em Cali é para a inclusão de grupos afrodescendentes na implementação deste artigo – o que, segundo especialistas, colocaria-os em outro patamar nas discussões internacionais: de sujeitos individuais, eles passariam a ser considerados sujeitos coletivos de direito, como acontece com os povos indígenas.
“Para nós é importantíssimo, porque sabemos que toda vez que falamos da questão racial no Brasil temos um diálogo bastante complexo”, afirmou Jhonny Martins de Jesus, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em entrevista à rádio Comunicação Ancestral, uma iniciativa da Conaq e da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
“Quando a convenção reconhecer que os povos afrodescendentes do mundo são importantes para a conservação da natureza, isso vai abrir outros canais, outros diálogos, inclusive no processo de legalização dos territórios quilombolas no Brasil”, disse Martins.
No Brasil, os 3,8 milhões de hectares de territórios quilombolas estão entre as áreas mais conservadas do país. Mais de 98% deles, no entanto, estão ameaçados por obras de infraestrutura, requerimentos de mineração e sobreposições de imóveis particulares, segundo um levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), publicado neste ano em parceria com a Conaq.
Na América Latina e no Caribe como um todo, cerca de um quarto da população afrodescendente ocupa zonas rurais, 78% delas em locais de alta biodiversidade e ecossistemas preservados, como o Chocó, região historicamente habitada por descendentes de africanos e que atravessa Panamá, Colômbia, Equador e Peru.
Para as organizações, o reconhecimento é fundamental também para facilitar políticas de reparação e o recebimento de recursos econômicos provenientes do acesso ao patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais desses povos.
Um exemplo desse conhecimento é a “Farmacopeia Popular do Cerrado”, um dos raros registros escritos sobre plantas medicinais brasileiras. Publicado em 2010, o livro foi resultado de uma pesquisa popular com mais de 260 raizeiros, farmácias e grupos comunitários.
“O reconhecimento implica participação, consulta e benefícios econômicos. Porque não se pode conceber que as comunidades que são guardiãs e protetoras da natureza vivam em situação de pobreza. Nenhuma pessoa em situação de pobreza pode conservar a biodiversidade”, afirma John Antón, pesquisador do Proceso de Comunidades Negras, organização que reúne mais de 140 entidades colombianas.
Na COP, o pleito afrodescendente vem sendo impulsionado, principalmente, pela vice-presidente colombiana, Francia Márquez, que atuou para garantir o apoio do Congo e de outras nações africanas.
“Sob a liderança dela, foi feito um esforço fundamental de diálogo com os países africanos para que as barreiras por eles apresentadas sejam superadas e que as partes possam garantir direitos”, diz Ester Carneiro, assessora para Clima e Racismo Ambiental do Geledés – Instituto da Mulher Negra, que está acompanhando as negociações em Cali.
Até esta terça-feira (29), o texto que estava sendo discutido pelos países propunha o reconhecimento do papel das ações de pessoas com descendência africana na conservação da biodiversidade e na “implementação da convenção em alguns países”. Assim como a proteção e promoção dos conhecimentos dessas comunidades no uso da biodiversidade e o apoio financeiro, de forma voluntária, a esses grupos. O documento segue em discussão e só deve ser aprovado no fim da semana.
“Espero que as pessoas olhem para esses povos e entendam que a chave para salvar o planeta está com a gente”, diz Nathalia Purificação, da Conaq.