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Ícone da antropologia e do indigenismo no Brasil, a professora Manuela Carneiro da Cunha vê com preocupação a suposta “conciliação”, ditada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em torno do “marco temporal” das terras indígenas.
“A ideia de negociar acho que é nova, mas é ruim. É nova, mas é ruim. Porque não se negocia com minorias mais fracas. Caso contrário, se pode extrair direitos fundamentais, digamos, da fraqueza relativa de uma parte”, disse a professora à Agência Pública.
Neste domingo (4), a principal organização indígena do país, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), indicou seus cinco representantes à mesa da “conciliação”. A Apib condenou por diversas vezes a adoção desse modelo, mas acabou indicando seus nomes a fim de cumprir a ordem de Gilmar Mendes.
“Qual seria a saída? Eu não estou habilitada para responder a isso, mas eu acho que eles [indígenas] estavam entre a cruz e a caldeirinha. Sei que eles hesitaram em aceitar participar, mas foram convencidos e aconselhados de boa-fé que não participar seria mais nocivo, provavelmente, do que aceitar participar. Agora, participar não quer dizer que eles vão aceitar. E sem o aceite deles não há conciliação. Conciliação precisa de duas partes que aceitam uma solução intermediária em torno da qual alguém vai perder alguma coisa e outros vão negociar em torno disso”, disse a professora doutora da Unicamp e da USP e professora emérita da Universidade de Chicago (EUA).
A primeira reunião foi feita nesta segunda-feira (5) no STF. Minutos antes, porém, os advogados dos indígenas e da sociedade civil foram vergonhosamente barrados na entrada do prédio do STF pelos seguranças do tribunal. “Esse é o cenário conciliatório da suprema corte brasileira. Estamos sendo obrigados a estar aqui hoje e essa é a situação. Só os indígenas sendo barrados, estamos cansados!”, desabafou o diretor jurídico da Apib, Maurício Terena, na frente do tribunal. O presidente do STF, Luís Barroso, depois pediu desculpas pelo equívoco.
Em uma palestra de 40 minutos, o ministro que determinou a “conciliação”, Gilmar Mendes, falou aos participantes sobre “protagonismo criativo”. Rechaçou seus “críticos”, sem citar nomes, que “rotulam esta mesa de debates como um bazar de negócios”. Provável referência ao professor da FGV Oscar Vilhena, que publicou um artigo na Folha de S.Paulo intitulado justamente: “O grande bazar de direitos”.
Vilhena escreveu que a “inovação” representada pela “conciliação” é “muito preocupante”, em especial porque “amplia ainda mais os poderes do tribunal, que passará a exercer uma função cada vez mais política de coordenar e compor interesses, pertinentes aos órgãos de representação em detrimento do cumprimento de sua missão institucional que é a garantia da Constituição”.
Em artigo publicado em maio pelo jornal O Globo, o advogado Daniel Sarmento apontou outro problema, ao observar que a possível exploração de minérios em terras indígenas foi inserida por decisão de Mendes no mesmo balaio da “conciliação” do “marco temporal”.
Para Sarmento, a “conciliação” vai implicar uma “negociação sobre o que é absolutamente inegociável: direitos fundamentais indisponíveis de um grupo social minoritário e vulnerabilizado, que configuram cláusulas pétreas da Constituição. Uma negociação em que certamente predominarão autoridades brancas, decidindo sobre o direito mais básico dos povos indígenas. Uma negociação em que também estará em jogo o futuro do clima e do planeta”.
Para o ministro Mendes, porém, seus críticos “são incapazes de compreender a função da jurisdição constitucional e de analisar a crise sob todos os ângulos”.
“Esquecem os críticos que não há verdadeira pacificação social com a imposição unilateral de vontades e visões de mundo. Ignoram que, sem diálogo honesto, tolerância e compreensão recíproca nada surgirá, muito menos a afirmação de direitos fundamentais”, discursou Mendes.
Conforme o modelo definido pelo ministro, a comissão terá 24 membros titulares, incluindo quatro parlamentares indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados. O ministro decidiu que a Procuradoria-Geral da República (PGR) terá um papel de mera “observadora”. Enquanto o procurador-geral da República, Paulo Gonet, aceitou seu papel de espectador, o ruralismo correu para ocupar espaços.
Sem qualquer explicação sobre os critérios que utilizou, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), indicou como membros titulares os deputados federais Pedro Lupion (PP-PR) e Lucio Mosquini (MDB-RO).
Lupion é o presidente da Frente Parlamentar do Agronegócio, ou seja, coordenador da bancada ruralista. Bolsonarista convicto, em afronta aberta ao Poder Judiciário já disse que vai lutar pela anistia de Bolsonaro para que ele concorra às eleições presidenciais de 2026. O novo “conciliador” sobre a demarcação de terras indígenas, alçado que foi a essa condição pelo STF-Congresso, portanto está empenhado em um projeto eleitoral em torno do político que nunca demarcou nenhuma terra indígena e prometeu reiteradas vezes nunca fazê-lo.
Alçado no STF à condição de “conciliador”, ele pode ser tudo menos um conciliador nas coisas mais banais. Em abril, por exemplo, foi convidado pelo Palácio do Planalto a participar de um evento do agronegócio no qual estaria o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Recusou o convite sob alegação de que iria participar de uma feira agropecuária em Londrina (PR).
Em outubro de 2023, Lupion descartou negociação com o governo sobre vetos ao projeto de lei do “marco temporal”. Em maio passado, novamente rechaçou acordo com o governo em torno do veto do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre um tema penal e prometeu fazer uma ofensiva pela manutenção de vetos do ex-presidente Bolsonaro à Lei de Segurança Nacional.
A suplente de Lupion, também indicada por Lira, é a deputada Bia Kicis (PL-DF), mais uma bolsonarista de quatro costados.
O outro membro titular indicado por Lira, Lucio Mosquini, vem a ser autor de um novo “PL da Grilagem” apresentado em 2021. Conforme levantamento do site De Olho nos Ruralistas, o projeto é igual a outra iniciativa anteriormente barrada no Senado que ”anistia invasores, favorece latifundiários e prevê privatização de terras públicas”.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), indicou como titular a senadora ruralista Tereza Cristina (PP-MS), cuja principal credencial autoexplicativa foi ter sido ministra da Agricultura de Bolsonaro. Em 2014, a campanha eleitoral de Tereza Cristina recebeu doação de R$ 30 mil de um fazendeiro acusado de ser o mandante do assassinato do líder indígena guarani Marcos Veron, sequestrado e brutalmente espancado até a morte por jagunços em Mato Grosso do Sul.
Durante a reunião desta segunda-feira, novamente os representantes da Apib pediram que o ministro Mendes decidisse, antes do início da “conciliação”, sobre diversos pedidos feitos pela organização que permaneciam pendentes de apreciação. “O processo conciliatório proposto por essa relatoria [no STF], sem a devida suspensão dos efeitos da Lei 14.701/2023, representa a consolidação da violação dos direitos dos povos indígenas”, escreveu a Apib, mencionando recentes ataques promovidos por fazendeiros contra indígenas, em especial em Douradina (MS), onde, no sábado, pelo menos dez indígenas foram feridos, dois deles gravemente.
O pedido não foi atendido e a “conciliação” começou. O ministro disse que decidirá nos autos sobre os pedidos da Apib.
Nos anos 1980, a professora Manuela Carneiro da Cunha acompanhou, como presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), as discussões sobre o capítulo da Constituição de 1988 destinado aos povos indígenas. A partir da Carta, o Executivo acelerou seus processos de demarcação de terras indígenas no país. Com o passar do tempo, as terras indígenas se revelaram uma barreira importante contra o desmatamento, em especial na Amazônia. Para a professora, um dos principais temas de fundo da tentativa de impor um “marco temporal” é o afrouxamento ou mesmo a perda dos territórios indígenas.
“É ruim para os indígenas e ruim para o Brasil, que estaria perdendo uma coisa preciosa, que é a contribuição extraordinária dos povos indígenas como barreira do desmatamento a fim de mitigar ou afrontar as mudanças climáticas. Sobre as quais agora no Brasil, pelo menos depois do que aconteceu no Rio Grande do Sul, acho que ninguém mais duvida.”