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Se Donald Trump ganhar as eleições nos Estados Unidos (EUA) no pleito cujo principal dia de votação acontece amanhã, ele deverá muito a Elon Musk. No último mês, o homem mais rico do mundo abraçou com tanto entusiasmo a campanha do republicano que acabou garantindo um empurrão final – e dando uma enorme lição ao mundo sobre como funciona a corrupção à americana.
O cenário é escandaloso. Tendo obtido uma promessa de um cargo poderoso num futuro governo, Musk prometeu doar pelo menos 500 milhões de dólares para a campanha, segundo o próprio Trump. Fez mais. Organizou jantares para convencer outros milionários a doar, como ele, “em grandes números”, garantindo que seria um investimento seguro. Criou um Super Pac, uma organização para levantar fundos e fazer ações para apoiar uma campanha eleitoral, chamada America Pac, cujo orçamento de 180 milhões de dólares, além de pagar 2.500 pessoas para irem de porta em porta convencendo eleitores, contratou advogados para travarem na Justiça batalhas legais que podem favorecer Donald Trump.
No X, Musk elogiou Trump, botou seu grande alcance para promover teorias da conspiração de extrema direita e criticar a candidata democrata Kamala Harris – ele, inclusive, se apossou de um perfil que estava dormente, @America, para fazer campanha. Usou, ainda, sua conta com 200 milhões de seguidores para entrevistar Donald Trump em 12 de agosto. Durante a entrevista, penosa de se ver, ambos deram risada sobre demitir trabalhadores que fazem greve (a Tesla é a única grande fabricante de carros que não permite que seus trabalhadores montem um sindicato).
Como sabemos, os tweets de Musk são impulsionados de maneira desproporcional pelo algoritmo da corporação que ele adquiriu e que perdeu 70% do seu valor desde então – hoje, o Twitter é pouco mais que uma máquina de propaganda do menino Elon na sua busca por poder.
Tanto que, embora pose de defensor da liberdade absoluta, o Twitter suspendeu a conta de um repórter que tinha obtido informações confidenciais sobre a campanha republicana e ainda baniu links para a postagem original no Substack.
Além disso, para quem ainda não sabe, Musk prometeu distribuir 1 milhão de dólares por dia para eleitores de estados-chave que assinarem uma petição defendendo a Constituição – uma maneira disfarcada de fazer uma loteria para quem vota em Trump, medida ilegal em qualquer país do mundo, mas que nos EUA recebeu apenas um “alerta” do Departamento de Justiça de que “potencialmente” seria irregular.
Em uma entrevista ao pseudojornalista Tucker Carlson, Elon Musk admitiu que “detona” Kamala sem parar e perguntou: se Trump perder, “de quanto tempo você acha que vai ser minha sentença de prisão?”.
Elon está preocupado em saving his own ass.
Tamanho envolvimento de um bilionário na campanha “não tem paralelo na história recente”, segundo o New York Times.
Trata-se da compra mais escancarada de um cargo público por um interesse privado da história recente.
Imagine você se o finado Roberto Marinho, magnata das comunicações, tivesse feito o mesmo: entrado no palanque de um candidato presidencial, despejado milhões, abertamente, tendo já garantido seu lugar no governo. Ou algum Odebrecht. Seria um escândalo, colunas de opinião como esta aqui se multiplicariam, não só no Brasil como no mundo, e todas elas iam lembrar que, de fato, o Brasil é um país corrupto, a corrupção aqui é endêmica, isso aqui não tem jeito mesmo. Nunca vai dar certo.
Só que a corrupção americana é perversa porque ela é legalizada. Ali, as corporações gananciosas e as pessoas sem escrúpulos como Elon Musk, laudados como grandes empreendedores que levam o país adiante, conseguem alterar as leis de maneira que comprar partes do Estado seja tido como um ato de grande visão empreendedora. Gênios do business. A criação dos Super Pacs é exatamente isto: uma maneira de normalizar a influência política direta por corporações e milionários. Uma maneira de legalizar o caixa dois, dinheiro para campanha que, lembremos, formava grande parte das denúncias de corrupção que tanto chocaram a opinião pública e a imprensa durante a Lava Jato. Corrupção essa que gerou até multa bilionária à Petrobras e à Odebrecht nos Estados Unidos, aplaudida daqui do Brasil como um país muito mais evoluído, muito mais limpinho que o nosso e, portanto, com estatura moral para multar nossas empresas por corrupção sujinha que nem ocorreu na terra deles.
Ora, quando a Odebrecht financiava o marqueteiro João Santana para fazer campanha política para candidatos de esquerda em outros países da América Latina, era disto que se tratava: uma corporação milionária pagando campanha política para levar vantagem.
Me choca que isso não choque ninguém. Que sejamos colonizados a ponto de não ver o que grita na nossa cara. O sistema americano é corrompido desde o âmago, por mais que se dê um verniz de normalidade a isso.
A conquista do Estado por Musk será um passo a mais na empreitada por poder da nova oligarquia digital, os tecno-oligarcas, que agem exatamente como os tradicionais oligarcas, os plutocratas que o Departamento de Justiça tanto propagandeou que estava combatendo quando lançou sua investigação contra corrupção estrangeira, em empresas como Odebrecht e Petrobras.
É a quintessência da corrupção à americana, cínica, autocomplacente e imperialista. Um país tão corrupto que se engana a si e ao resto do mundo sobre a própria lisura e as próprias boas intenções.
Vejamos. No caso de Musk, de que vantagens estamos falando?
Uma vez na Casa Branca, Elon Musk terá energia de sobra para fazer o estrago que ele quiser, assim como o candidato a vice-presidente J. D. Vance, que, como eu já escrevi aqui, é amigo de outro tecno-oligarca próximo a Musk, Peter Thiel. O que ele pretende não é apenas o carguinho de coordenador do “departamento de eficiência governamental” que Trump lhe prometeu de presente. O que ele quer é evitar a qualquer custo que seus negócios sejam regulados, paguem impostos, respondam criminalmente pelo mal que têm causado à sociedade, cumpram a lei. Sob o mantra falacioso de “manter a competitividade”, “reduzir o Estado”, “manter a livre iniciativa”, o que ele quer é não ceder um centímetro do lucro, das suas empresas e o pessoal. Quer manter o faroeste digital.
Mas também ganhar apoio governamental – subsídios do governo que ele diz querer reduzir. Um exemplo levantado pelo site Político diz respeito ao subsídio que a Starlink quer receber de 885 milhões de dólares dentro de um programa de apoio rural criado por Joe Biden. Vale ler: o site descreve como Musk tem formado aliados pessoais em Washington para conseguir essa boquinha.
Outro sonho de Musk, segundo o site, é refrear legislações ambientais que impedem sua empresa SpaceX de enviar pessoas para Marte mais rapidamente – qualquer relação com o tecnocrata bilionário do filme Don’t Look Up não é mera coincidência –, manter e ampliar seus vultosos contratos com o Departamento de Estado e a Nasa, que superam R$ 15 bilhões, e, claro, controlar a legislação relativa à Inteligência artificial (IA). Embora a ordem executiva de Joe Biden que exige o governo a monitorar mais firmemente a aplicação de IA seja bem tímida, Trump já prometeu que vai jogá-la no lixo.
Lembremos que na última eleição um dos fatores decisivos para segurar a tentativa de golpe foi a ação das Big Techs, incluindo aí Twitter, Facebook e Google (YouTube), de “desplataformizar” as contas de Donald Trump e suprimir seu discurso golpista. Hoje, o jogo mudou, em grande parte operado por bilionários de extrema direita como Musk. Uma parte do Vale do Silício entendeu que um governo Trump seria mais favorável a eles do que um governo democrata, depois de dezenas de ações do Departamento de Justiça para quebrar o oligopólio e sanar as práticas anticoncorrenciais dessas empresas.
Trump, que já gastou as cordas vocais em críticas às Big Techs, aceitou de bom grado esses tecno-oligarcas como novos aliados.
A maior prova de que estamos falando de uma oligarquia, e não apenas de um tecnocrata isolado, é a postura, também escandalosa, do jornal Washington Post, de Jeff Bezos, dono da Amazon, que pela primeira vez em 48 anos decidiu não endossar um dos dois candidatos à presidência. A postura gerou uma crítica aberta do ex-editor-chefe do jornal Marty Baron, que chamou a postura de “covarde” em um momento em que claramente um dos candidatos é uma ameaça à democracia. Bezos desconversou: disse que o endosso do segundo maior jornal americano não importa. Mas a realidade é transparente como o ar: o dono da Amazon prefere um governo que não se meta a querer regular as empresas de tecnologias. Está pagando as contas do jornal para isso, já há muitos anos. (Vale lembrar também o editorial do Washington Post condenando o STF brasileiro quando suspendeu o Twitter, chamando a decisão de “irresponsável” e “autoritária”. Já então Bezos demonstrava ser aliado na cruzada antileis dos tecno-oligarcas da qual Musk é apenas a face mais descarada.)
Talvez a derrota para o nosso STF – quando ele teve de enfiar o rabinho entre as pernas, pagar as multas e cumprir nossa lei – tenha ensinado a Elon Musk que, para seguir melando as leis de outros países, ele precisa, também, de um Estado para chamar de seu. O Estado americano.
Seria ingênuo achar que, entre os planos recentemente descritos pelo jornalista Jamil Chade, de um potencial governo Trump usar a Usaid para fomentar a extrema direita mundial, não estariam incluídos chamados para a defesa incansável de liberdade de expressão, que hoje já se mistura com a narrativa orquestrada por spin doctors das Big Techs para refrear qualquer regulação.
Se Trump ganhar, e a tecno-oligarquia tomar conta do Estado americano, sobrará para o resto do mundo a inglória tarefa de combatê-la em seus países, de tentar estabelecer respeito às leis locais e de criar novas regras que limitem o poder dessas empresas que, hoje, operam por regras próprias sem nenhuma supervisão. Estamos a um passo de saber o que virá.