Era por volta das 22h, no domingo, 15 de janeiro, quando João Richard de Oliveira Gama Lopes, de 25 anos, e o primo *Roger, de 17, saíram do Jardim Souza, bairro periférico na Zona Sul de São Paulo. Os dois decidiram ir curtir um baile funk no Jardim Jangadeiro, há cerca de 7 km de casa, mas não chegaram à festa de rua. Pouco tempo depois de saírem, Richard foi morto em uma ação policial e Roger, menor de idade, detido por posse ou porte de arma de fogo.
O trajeto dos dois foi o seguinte: assim que deixaram a comunidade em direção ao baile, Richard e Roger se depararam com a viatura conduzida pelos policiais Jefferson Viana Souza e Thiago dos Santos. Quando visualizaram os dois jovens negros, numa motocicleta TriumphTiger 800 XCX avaliada em R$ 57 mil, os agentes deram sinal de parada, “emitindo sinais luminosos e sonoros”, segundo o registro do Boletim de Ocorrência.
Richard não atendeu ao comando da viatura, nem do primo, que pediu a ele que parasse a moto, e pegou a contramão no sentido estrada do M’Boi Mirim. Mais à frente, encontraram outra dupla de policiais, Cláudio Pereira de Aguiar Filho e Gabriel Santana Azevedo, que estavam em patrulhamento pela região e passaram a acompanhar a ocorrência.
Ao se aproximarem da base da Polícia Militar, que fica no Jardim Ranieli, os dois primos encontraram um quinto policial, o cabo Pedro Rafael dos Santos Bertucci, que tentou pará-los. Segundo o depoimento informal do cabo, Roger, que estava na garupa, teria feito menção que iria colocar a mão na cintura. O cabo relata que atirou quatro vezes contra os jovens. Segundo o boletim, a versão informal de Bertucci é que Roger “fez menção de sacar uma arma de fogo levando a mão à cintura”. Segundo o PM, “ temendo por sua vida, [ele] efetuou quatro disparos contra o agressor, não tendo visto nessa oportunidade, nenhuma arma”. Segundo o registro, o policial “não fazia uso de câmera corporal”.
O depoimento dos agentes da segunda viatura (o testemunho foi conjunto) narra que eles não viram o momento dos disparos, mas teriam ouvido os tiros. Os PMs afirmaram terem perdido os homens de vista por alguns instantes. Depois, teriam se deparado com ambos na moto. Eles dizem que, assim que se aproximaram, o condutor caiu e o garupa levantou as mãos. Os policiais relataram que, logo após os tiros, encontraram uma arma no trajeto tomado pela motocicleta. A arma encontrada foi um revólver calibre 32 “com numeração suprimida e desmuniciada e que estaria na posse do garupa da motocicleta, segundo informado pelos policiais militares”, consta no BO.
Em depoimento, Roger, o adolescente, negou que estivesse armado, afirmou não ter levado a mão à cintura e que, no momento da voz de parada do policial que efetuou os disparos, uma das mãos estava no peito de seu primo e a outra, segurando no ferro (alça) da motocicleta. Roger também relata que viu o momento quando o cabo Bellucci veio em sua direção e que, nesta hora, teria visto “o policial erguendo as mãos e empunhando arma de fogo, ouvindo os disparos em sua direção”, descreveu o adolescente.
Um dos disparos atingiu a região do peito de Richard. Após ser baleado, ele conseguiu guiar a moto por poucos metros, mas foi perdendo as forças e ficando inconsciente. Percebendo que o primo não conseguia guiar a motocicleta, Roger o segurou pelo peito e assumiu a direção, conseguindo assim estabilizar até o veículo fazê-lo parar. Ele permaneceu em cima da motocicleta, de onde percebeu que o primo estava sangrando. Em seguida as duas viaturas chegaram.
Familiares relataram à reportagem que, ao chegarem no Hospital M’Boi Mirim, o médico informou que Richard havia falecido devido a uma parada cardíaca. A família afirma que demoraram 30 minutos para socorrê-lo. O hospital fica a 200 metros do local onde o jovem foi baleado. A pé, o trajeto dura cerca de 4 minutos.
Distância entre o local da abordagem e o hospital
“Ele vai me matar”, grita Richard em vídeo gravado por anônimo
Alguns minutos após Richard ser atingido, um anônimo, curioso com a interdição da via, passou no local e, com o celular, gravou um vídeo da abordagem. Nas imagens é possível ver um grupo de policiais próximo a um rapaz — que a família confirma ser Richard — , que grita: “ele vai me matar”. Ao lado, o primo menor de idade, deitado no chão, recebe vários socos de um policial agachado de costas para câmera. Um grupo de PMs assiste à cena e circula pelo local.
Outro vídeo, gravado um pouco depois das cenas de agressão, mostra apenas as roupas de Richard, próxima da viatura e de alguns policiais enquanto um homem fala em tom de indignação: “isso não se faz não. Vocês matou um inocente. Olha a moto do ‘brother’, puxa a placa pra ver se é roubada”.
A Agência Pública apurou que, por volta das 22h20 — horário próximo ao registrado na ocorrência — uma viatura da Polícia Militar esteve na casa de um familiar de Richard perguntando por ele. Conforme relatado por uma testemunha, sob condição de anonimato, os agentes alegaram que foram até o endereço porque a motocicleta de Richard havia sido roubada e eles teriam achado a moto e quem a roubou. Segundo a testemunha, os policiais teriam deixado o recado que algum familiar precisaria comparecer ao 100º DP por conta do roubo.
Assim que receberam a informação que Richard havia sido roubado, os familiares foram até a delegacia. Eles relatam que, assim que chegaram, encontraram a namorada do rapaz saindo e dizendo que nem Richard nem o primo Roger estavam ali.
Ainda na delegacia, os familiares receberam uma ligação de um conhecido dizendo que havia passado na Estrada do M’Boi Mirim e viu a moto Richard parada, com sangue próximo. Quando chegaram no local, receberam a informação de que o jovem havia sido levado ao hospital. “A gente foi pro hospital, se identificamos, ficamos esperando [na recepção] e foi a hora que o médico veio e falou que ele chegou em parada cardíaca, que o tiro tinha perfurado, que demorou de socorrer ele”, relatou Ricardo Lopes, 46 anos, autônomo e pai do jovem.
Perseguido por ser e ter
A paixão que Richard tinha por motocicletas começou na adolescência. Enquanto o rapaz dependia economicamente dos pais, eles evitaram que o filho adquirisse uma moto. “Eu nunca incentivei, por achar perigoso. Não estava nem pensando em perigo de polícia, nada disso, era uma questão de velocidade, acidente de trânsito, essas coisas. Mas, quando ele começou a trabalhar e já não estava mais com a gente, ele comprou uma moto e começou a trabalhar como motoboy”, conta Vilma de Oliveira, 48 anos, técnica de enfermagem e mãe do rapaz.
De acordo com a mãe, as abordagens policiais aumentaram significativamente há cerca de quatro anos, quando ele adquiriu a primeira motocicleta mais potente e mais alta, uma Honda, modelo XR 300 cc, avaliada hoje em R$ 25 mil. Vilma conta que, para o filho adquirir a motocicleta, ela fez um empréstimo consignado em seu nome que o garoto foi quitando com a ajuda dos familiares. “Eu, o pai, os tios, sempre ajudamos ele”, conta.
Nos últimos quatro anos, Richard trocou de motocicleta cinco vezes, sempre buscando um modelo mais novo e mais potente. “A primeira troca foi para uma Tiger branca, depois foi uma BMW, voltou para outra Tiger branca e agora, em novembro, que ele chegou nessa que ele tanto queria. Ele falou: ‘mãe, é essa que eu quero, só que agora vou dar um tempo com ela e eu vou trabalhar, vou juntar dinheiro porque eu vou trocar por uma zera’”, lembra Vilma.
Paixão que Richard tinha por motocicletas começou na adolescência
A mãe atribui o aumento na quantidade de abordagens ao fato do filho ser negro, morar na favela e ter uma motocicleta cara. “Ele não andava 5 km sem passar por uma abordagem. Eu já fui parada com ele, na moto. Eu falava para ele, ‘que gosto você tem de quer uma coisa que você não pode usufruir?”, conta.
Segundo os familiares, nos últimos meses o jovem vinha passando por diversas abordagens abusivas e agressivas. A última, antes da que resultou na sua morte, aconteceu no dia 2 de janeiro, assim que Richard voltou do réveillon com a família. “A moto estava parada na porta da casa da prima dele, a moto nem na rua estava; então quando eles [os policiais] puxaram tudo, viram que não tem nada no nome dele, não tem nada na moto, que está no nome dele, que estava tudo certo, eles deram multa de pneu careca e apreenderam a moto”, relata a mãe.
Para Vilma, se desta vez o filho não obedeceu a ordem de parada do policial, foi justamente porque ele não queria mais passar por aquela situação. “Ele não aguentava mais ser abordado e apanhar sendo que a moto era dele. Os policiais ficavam mais bravos ainda quando não achavam nada com ele e viam que o Richard era honesto e trabalhador. Eu sei que ele não era [bandido], mas eu queria que as pessoas também soubessem”.
Moradores denunciam que Jardim Souza está “sitiado” por policiais
Desde a morte de Richard, moradores do Jardim Souza vêm relatando um aumento significativo na quantidade de viaturas circulando pelo bairro e fazendo abordagens mais repressivas que o habitual.
No dia do sepultamento do jovem,16, a Pública presenciou diversas viaturas no entorno do cemitério. Uma chegou a entrar, foi até a região do velório e saiu. A reportagem ouviu relatos de motociclistas que foram abordados quando estavam a caminho do velório e também quando voltaram para comunidade.
Na mesma tarde do dia em que Richard foi enterrado, começaram a circular relatos de que policiais estavam abordando quem estivesse com a camisa que homenageia o jovem e levando a vestimenta embora. “Pessoal, menino principalmente, quem tiver com a camiseta do Richard os policiais estão enquadrando todo mundo e levando as camisetas Cuidado”.
Um vídeo a que a reportagem teve acesso mostra uma viatura da polícia militar estacionada, enquanto quatro policiais abordavam um grupo de pessoas. Nas imagens é possível ver um PM com os braços para trás, com um pano branco enrolado numa das mãos e conversando com um homem sem camisa. Também é possível ver outro rapaz sem camiseta.
Segundo a pessoa que gravou o vídeo, o que estava acontecendo ali era algum tipo de retaliação. “Os meninos não podem usar a camiseta, os meninos não podem ficar enturmados. Na quebrada, eles querem botar o terror.”
Outro vídeo em que a reportagem teve acesso mostra um homem, próximo a um portão, quando dois policiais se aproximam dele, um empurrando o rapaz e em seguida o agride com o cacetete. O homem reage com um soco que parece atingir o rosto do policial. O fato aconteceu na noite do dia do enterro do Richard.
Na quarta-feira, 19 de janeiro, a Pública esteve no Jardim Souza e se deparou com diversas viaturas circulando nas ruas do bairro e uma blitz na via principal que dá acesso ao bairro. O clima no bairro é de medo. Em grupos de conversas e redes sociais têm circulado a informação de que policiais militares estiveram na comunidade e deixaram um recado para os comerciantes: “O pessoal falou que os caras [policiais] desceu lá no [Jardim] Souza e falou pros comerciantes que sexta e sábado é para eles fechar os comercio que o bagulho vai ser louco de noite”.
Outro lado
A secretaria de Segurança Pública enviou uma nota à Publica informando que:
“O caso foi registrado como morte decorrente de intervenção policial e ato infracional análogo à posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito e é investigado pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). O homem, de 25 anos, foi socorrido pelo resgate ao hospital da região, onde morreu. O adolescente, de 17 anos, foi apreendido e, posteriormente, foi liberado ao curador após assinatura do Termo de Compromisso e Responsabilidade do ECA. Um revólver calibre .32 com numeração raspada foi encontrado nas proximidades e apreendido. Foram solicitados exames ao IC e ao IML para auxiliar no esclarecimento das circunstâncias dos fatos. A PM informa que todas as circunstâncias relativas aos fatos são apuradas por meio de um Inquérito Policial Militar (IPM).”
Em relação a aumento de abordagens e denúncias de casos de agressões relatados e registrado por moradores, a secretaria enviou a seguinte nota:
A Secretaria da Segurança Pública esclarece que as ações de policiamento foram intensificadas em todo o Estado, desde o dia 11, por meio da Operação Impacto, com o reforço de 17 mil policiais militares nas ruas. As informações trazidas pela reportagem serão apuradas e testemunhas ouvidas para que relatem formalmente as denúncias.
A Corregedoria da Polícia Militar está à disposição para registrar e investigar toda e qualquer denúncia contra integrantes da instituição.”