Em 25 de junho de 2016, estudantes indígenas ocuparam as ruas do centro de Cuiabá. O grupo protestava contra o massacre do povo Guarani-Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, e pedia justiça por lideranças mortas em Mato Grosso.
Foi a primeira vez que ouvi falar de Valmireide Zoromará. Em um carro de som, Marta Tipuici, jovem do povo Monoki e estudante de ciências sociais da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), denunciava o assassinato da líder Paresi, em 2009.
A voz de Marta no microfone ecoou na capital do agronegócio. Em alto e bom som, a jovem contou que Valmireide foi morta quando pescava com a família em uma represa, próxima à aldeia, na região de Diamantino.
Em frente ao Ministério Público Federal (MPF), cobramos a investigação do caso. Como poderia alguém tirar a vida de uma mulher que buscava alimento para família e não ser preso? A dor do povo Paresi se tornou a nossa.
Mas o silêncio do MPF foi a nossa única resposta. Ninguém saiu do prédio, ou sequer olhou pela janela para conferir o que acontecia. Mas, nosso recado estava dado: Valmireide jamais seria esquecida.
Sou do povo Balatiponé, mas carrego também a ancestralidade Paresi e Nambiquara. Naquela manifestação, eu já era jornalista recém-formada pela UFMT e mestranda em antropologia social.
Os outros colegas, que participavam do protesto, também eram estudantes da universidade e entraram na instituição pelo mesmo Programa de Inclusão Indígena, o “Proind Guerreiros da Caneta”. Sem conhecer ninguém da família de Valmireide, não tivemos mais notícias sobre o caso. A esperança de justiça, no entanto, nunca se apagou.
Sete anos depois, em meados de 2023, recebi uma mensagem de Marta: “Adivinha quem conheci?”. Ela estava falando de Kelly Zoromará, a filha de Valmireide. Foi impossível segurar o sorriso. Enfim, poderíamos ter informações sobre a líder Paresi assassinada.
Por que isso importa?
Foto mostra Valmireide em audiência em 2008
Por telefone fiz o primeiro contato com Kelly. Informei que gostaria de saber mais sobre o caso e fazer uma reportagem sobre Valmireide. Ela se disse honrada. Depois de alguns meses, em julho deste ano, fui até o território: a Estação Parecis, que fica entre os municípios de Nova Marilândia e Diamantino, ambos em Mato Grosso.
Depois de ter passado por Nova Marilândia, percorri alguns quilômetros de carro pela MT-160 e cheguei à BR-364. Já visitei muitas aldeias em Mato Grosso, e do povo Paresi, e imaginei que fosse encontrar um território parecido com os outros, mas lá fui surpreendida com uma realidade muito distinta.
A Estação Parecis fica no entroncamento entre a MT-160 e a BR-364. A aldeia é cortada pela rodovia e cercada por plantações de grãos e armazéns. De primeira, não reconheci a aldeia, mas a oca de palha ao lado da BR foi o sinal de que havia chegado ao local.
Encontrei Kelly na primeira casa. Ela me recepcionou com um longo abraço e me levou para conhecer o território, que a mãe e seus ancestrais tanto lutaram para proteger.
Apesar da existência da portaria declaratória do Ministério da Justiça, desde março de 2016, que reconhece a posse de 2.170 hectares para o povo Haliti-Paresi, eles vivem e utilizam apenas cerca de 300 hectares, segundo Kelly. Ou seja, 14% da área total. O restante, 1.870 hectares, está ocupado por fazendas, o que representa um desafio constante para a preservação do modo de vida tradicional daquela comunidade.
Uma realidade muito diferente de outras aldeias de seu povo. A Terra Indígena Paresi, por exemplo, que fica em Tangará da Serra, tem uma área de 563.586,53 hectares.
Até mesmo a produção de grãos em área indígena, em Mato Grosso, ocupa um território maior. Distribuída em cinco terras indígenas – Paresi, Rio Formoso e Utiariti, da etnia Paresi, Irantxe, da etnia Manoki e Tirecatinga, da etnia Nambikwara –, as plantações de soja e milho se estendem por 19.600 hectares.
Segundo as lideranças da comunidade, enquanto os agricultores que ocupam o território continuam a plantar e enriquecer com a terra, eles ficam com o território contaminado por agrotóxicos e não podem nem utilizar o rio da aldeia, devido à impureza da água.
Os familiares de Valmireide ressaltam que a ocupação irregular do território não mudou muito nestes 15 anos desde a morte de Valmireide. Eles lembram que, na época, já havia invasores na aldeia. Foram as ameaças que obrigaram Valmireide e seus filhos a sair da aldeia, por segurança.
Valmireide estava em Nova Marilândia quando recebeu o convite do irmão para ir pescar. Kelly não sabia, mas as trocas de brincadeiras e risadas, antes de a mãe sair de casa, seriam as últimas que elas teriam.
Rio Cágado na Estação Parecis
Kelly não foi para a pescaria, mas os irmãos mais novos, Kesio de Amorim Zoromará e Kleberson José Zoromará, acompanharam a mãe. Ao todo, 13 pessoas da família de Valmireide estavam na represa quando o crime aconteceu. Essa era a terceira noite que eles iam ao local.
Kesio tinha 14 anos na época e nunca esqueceu aquela noite de 9 de janeiro de 2009, a última vez que ele esteve com a mãe. Ele me recebeu em casa e fez um relato emocionado dos acontecimentos, que ainda hoje soam absurdos.
Ele conta que a família foi para a represa, a uns 7 quilômetros da aldeia, em várias motos e todos se acomodaram para pescar. De um lado, estava ele, o irmão e um primo. Já os pais estavam do outro lado da represa, quando foram surpreendidos por um homem que gritou e atirou.
“No momento, achamos que tinha sido um tiro para cima. Depois, ouvimos o segundo tiro. Eu corri, meu primo também. Ficamos escondidos. Meu irmão também estava. Nós achamos que não tinha atingido ninguém. Até que minha mãe gritou que tinha acertado meu pai. Depois, minha tia começou a gritar que tinha atingido minha mãe e meu pai. Todo mundo entrou em desespero.”
Clique aqui para ver o depoimento de Kesio.
A perícia da Polícia Civil mostrou que Valmireide morreu no local, com quatro ferimentos no corpo, ao ser atingida por tiros de uma espingarda.
Valdenir Xavier de Amorim, marido de Valmireide, também foi alvo de vários disparos, mas foi levado para um hospital em Tangará da Serra e sobreviveu.
Kesio conta que seu pai continua com uma bala na cabeça, que não pode ser retirada. “Um braço ele não movimenta muito bem. Na cabeça ficou o chumbo e ele diz que sente dor, e não pode pegar peso”, conta.
Quem matou Valmireide?
Como jornalista e indígena, vi a injustiça e a violência se repetirem em diversos casos, muitos não solucionados, ao longo desses oito anos, mas nunca desisti de saber por que Valmireide foi assassinada sem que ninguém tivesse sido preso pelo crime. Por isso, investigar essa história foi a primeira ideia que me veio à cabeça quando concorri à bolsa do Programa de Formação para Repórteres Indígenas, da Agência Pública.
Ao pesquisar sobre o caso, porém, o que encontrei foi um processo que se arrastou durante anos, sem que o denunciado jamais fosse condenado. Pior: a Justiça demorou tanto a agir que o assassino morreu antes de ser julgado.
Minhas pesquisas trouxeram um retrato da impunidade que continua a vigorar no país quando se trata de crimes contra indígenas. Só no ano passado, pelo menos 208 indígenas foram assassinados no Brasil, conforme o relatório “Violência contra os povos indígenas”, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Houve aumento de 15% no número de vítimas em comparação com o ano de 2022, quando ocorreram 180 mortes.
A maioria dos crimes ficam impunes e os raros casos em que a Justiça é feita podem demorar anos, com tempo de sobra para os culpados fugirem. Em 2017, por exemplo, o Tribunal de Júri condenou dois homens pelo assassinato de Yamenerá Suruí, de 70 anos, também em Mato Grosso. Detalhe: o crime havia ocorrido em 1988, ou seja, 28 anos antes, e os acusados estavam foragidos.
No caso de Valmireide, o assassino foi identificado rapidamente, como descobri ao ter acesso à denúncia apresentada pelo Ministério Público Estadual de Mato Grosso (MPMT), poucos dias depois do crime. Os tiros foram disparados por Ismael Rosa Lima, gerente da fazenda Boa Sorte, onde ficava a represa.
Para o Ministério Público, Ismael se aproveitou do horário, se posicionou de forma que seria impossível a defesa da vítima e atirou contra Valmireide e o marido, Valdenir. Em seguida, fugiu do local.
Alguns dias depois, em 13 de janeiro de 2009, Ismael se entregou à polícia, na delegacia de Nobres (MT). No interrogatório, ele disse que foi fazer rondas na fazenda, quando viu o rastro de pessoas. Foi até o tanque verificar a situação, mas, segundo seu depoimento, quando se aproximou foi recebido a tiros e, por isso, fez os disparos, sem saber quem eram as pessoas que estavam ali.
Apesar da declaração de Ismael, a investigação da Polícia Civil mostrou que ninguém atirou contra ele. No local, os investigadores encontraram, além de dois cartuchos de espingarda deflagrados por Ismael, um boné e materiais de pesca, que foram usados pelos indígenas.
Ainda assim, dois meses após sua prisão, em 30 de março de 2009, Ismael recebeu um alvará de soltura. No dia seguinte, ele foi libertado e pôde aguardar o julgamento do crime em liberdade.
Segundo a família de Valmireide, ao longo do processo foram realizadas três audiências. E Ismael, assassino confesso, só esteve presente em uma delas. Nada foi feito para obrigá-lo a comparecer; ele permaneceu em liberdade.
O processo ficou praticamente parado durante mais de dez anos. Até que, no dia 18 de fevereiro de 2019, a Vara Criminal de Diamantino (MT) recebeu a informação de que Ismael havia morrido. A ação penal, proposta pelo Ministério Público, foi encerrada em 27 de novembro de 2019, após a extinção da punibilidade do acusado.
Conforme a certidão de óbito, Ismael morava em um sítio em Rosário Oeste (MT), mas morreu aos 47 anos na Policlínica do Verdão, em Cuiabá, devido a um ataque cardíaco.
Ismael deixou uma filha, que preferiu não dar entrevista sobre o caso. Mas me disse em mensagem que lamenta muito pela família de Valmireide e afirmou que todos tiveram perdas: “Ninguém ganha nesta situação”.
A sombra de Sebastião na Estação Parecis
A fazenda Boa Sorte, onde ocorreu o crime, pertencia a Sebastião de Assis, patrão de Ismael e um antigo conhecido dos Paresi. Após a morte de Valmireide, ele foi ouvido pela Polícia Civil e garantiu que nunca ordenou que Ismael atirasse contra as vítimas, mas sua relação com a comunidade sempre foi marcada por conflitos e tensões, o que culminou em uma tentativa de expulsão da população indígena da Estação Parecis, em 1994.
No processo de despejo, Sebastião e Ozenir de Araújo, proprietário da fazenda Dois Irmãos e vereador de Arenápolis, alegaram que os 300 hectares que estavam em posse dos indígenas lhes pertenciam muito antes dos Paresi, que teriam sido levados depois para aquela área.
Uma alegação que não se sustenta historicamente e que vale ser recordada em momento em que congressistas e ruralistas pressionam pelo estabelecimento de um marco temporal, que só reconheceria as terras indígenas que estavam ocupadas em 1988, apesar das expulsões e invasões que ocorreram antes e depois dessa data.
A Estação Parecis foi a primeira linha telegráfica fundada pelo marechal Rondon no início do século 20. O nome escolhido por Rondon foi uma homenagem aos Paresi, que habitavam a região desde tempos imemoriais.
Ainda assim, a remoção foi marcada para uma data emblemática para os povos indígenas, 19 de abril, Dia dos Povos Indígenas, daquele ano de 1994. A ação contaria com o apoio de 200 policiais, intensificando o clima de apreensão e insegurança na comunidade.
Matérias veiculadas na época denunciavam a situação
Em meio à iminente remoção, lideranças Paresi de outras regiões, como Daniel Cabixi, ergueram suas vozes em defesa do território ancestral de seus parentes, enquanto instituições indigenistas se uniram à luta, tecendo uma rede de apoio.
A atuação de instituições como o CIMI, Operação Amazônia Nativa (Opan) e um grupo de estudantes do curso de história da UFMT contribuíram para impedir o despejo da comunidade, que conseguiu permanecer em sua terra.
Valmireide, a neta de João Zoromará
A antropóloga Maria de Fátima Roberto Machado dedicou seus estudos à Estação Parecis, entrevistando figuras como João Zoromará, líder indígena que trabalhou com Rondon.
Através de suas pesquisas, Maria revelou a importância da estação para a história dos Paresi, especialmente os Zoromará, que lutaram para preservar suas terras e cultura mesmo diante das mudanças e desafios impostos pela chegada dos não indígenas.
Após a desativação da estação, João continuou no local que sempre pertenceu ao seu povo. São seus descendentes que vivem até hoje na Estação Parecis. Valmireide é neta de João e, assim como o avô, lutou pela demarcação do território.
“Essa força vem de geração em geração. A minha avó pegou do meu bisavô [João Zoromará]. Já minha mãe pegou da minha avó [Dejair Zoromará]. Ela brigava e lutava muito por esse território”, conta Kelly sobre a mãe, Valmireide.
Clique aqui para ver o depoimento de Kelly.
Seguindo os passos do avô, Valmireide se tornou uma voz essencial na luta pela demarcação da Estação Parecis. Para sua família, a bravura e compromisso da líder com a preservação da terra a colocaram na linha de frente dessa batalha.
“Alguns meses antes de ser morta, ela participou de uma audiência pública em Diamantino. Lá, ela teve um embate com os fazendeiros, questionou muitas coisas e eles não gostaram. Acho que viram ela como uma ameaça. E no pensar deles: ‘Se acabarmos com ela, acabamos com todo mundo. Eles saem dali, repartimos a terra e todo mundo ganha’. Mas foi ao contrário, com a morte dela a gente se fortaleceu mais, voltamos para casa e fomos atrás de nossos direitos”, afirma Kelly.
Kelly Zoromará, filha de Valmireide
Para o povo Paresi, a maior homenagem à memória e luta de Valmireide, 15 anos depois do seu assassinato, é a homologação do território.
“Acho que ela está muito feliz pelo que já conquistamos, de voltar ao território. Mas temos que continuar a luta, por ela e por todos que já se foram”, afirma Kesio Zoromará.
A viagem à terra de Valmireide me permitiu conhecer de perto não só sua história, mas também a resiliência da família Zoromará, que continua a luta incansável por justiça. Esse sentimento é compartilhado pelos jovens que protestaram em Cuiabá. Juntos, lutamos por um futuro onde a justiça seja feita e as terras indígenas sejam devidamente demarcadas e as comunidades possam viver em paz em suas terras ancestrais.
Conheça a autora
Helena Corezomaé