Documentos obtidos pela Agência Pública revelam que, durante o governo de Jair Bolsonaro, a produção de relatórios sigilosos no setor de inteligência do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) cresceu mais de 700% em relação aos quatro anos anteriores.
Os relatórios desse tipo, por serem produzidos na área de inteligência, não são necessariamente submetidos ao crivo do Poder Judiciário nem do Ministério Público. O órgão que poderia fiscalizá-los, uma comissão do Congresso Nacional chamada Comissão Mista de Acompanhamento de Atividades de Inteligência (CCAI), nunca requisitou o conjunto desses documentos, mas apenas uma pequena parcela, relativa ao ano de 2020 sobre um tópico específico.
Após a posse de Lula em janeiro de 2023, o MJSP novamente se recusou a fornecer à Pública uma simples listagem desses relatórios, por vezes usando os mesmos argumentos da gestão Bolsonaro.
Por que isso importa?
O MJSP elaborou, durante os quatro anos do governo Bolsonaro, 4.569 relatórios de inteligência, o que representou uma média de 1.142 documentos por ano – ou três por dia – no período 2019-2022.
Nos quatro anos anteriores, durante os governos de Dilma Rousseff (2015-2016) e de Michel Temer (2016-2018), o MJSP produziu 552 relatórios do gênero, ou 138 documentos por ano, em média.
A média anual durante os anos do governo Bolsonaro, portanto, registrou um salto de 727% (de 138 relatórios para 1.142 ao ano). Nesse período, a pasta foi comandada por três ministros: o ex-juiz e atual senador Sergio Moro (União-PR), o atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça e o delegado da Polícia Federal Anderson Torres.
Durante o primeiro ano do governo de Lula, a produção de relatórios do gênero continuou expressiva. Foram confeccionados 1.720 documentos apenas de janeiro a setembro de 2023. Na época, o ministério era comandado pelo ex-governador do Maranhão Flávio Dino, atual ministro do STF.
Inteligência foi protegida e ganhou mais espaço no governo Lula
Até janeiro de 2019, a área de inteligência do MJSP era uma coordenadoria que costumava atuar em grandes eventos esportivos ou investigações pontuais, em especial casos de pedofilia, que geraram uma série de operações denominada “Luz na Infância”, executadas pelas polícias estaduais.
A posse de Bolsonaro levou a alterações na organização e nos objetivos da coordenadoria. Por decisão do então ministro Moro, a coordenadoria ganhou o status de secretaria, denominada Secretaria de Operações Integradas (Seopi), e recebeu a nova competência de “estimular e induzir a investigação de infrações penais, de maneira integrada e uniforme com as polícias federal e civis”.
Na época em que a nova atribuição se tornou pública, os advogados criminalistas Leonardo Magalhães Avelar e Alexys Campos Lazarou, membros do Observatório do Direito Penal, alertaram para o risco de criação de uma espécie de “Abin paralela” dentro do MJSP e pontuaram que a Seopi não tinha “atribuições inerentes à Polícia Judiciária e, mesmo que fosse esse o intento inicial do governo, tampouco poderia um decreto legislar em matéria penal”.
Em junho de 2020, descobriu-se que a Seopi do MJSP havia produzido dossiês contra policiais e professores antifascistas na mesma época em que o então presidente Jair Bolsonaro havia feito um discurso em Águas Lindas (GO) contra “grupos de marginais, terroristas, querendo se movimentar para quebrar o Brasil”. Após a denúncia, a produção desse tipo de dossiê pelo MJSP foi declarada ilegal pelo plenário do STF.
Após a posse de Lula em janeiro de 2023, a Seopi voltou a ser uma coordenadoria, a Coordenação-Geral de Inteligência (CGINT), subordinada à Diretoria de Operações Integradas e de Inteligência (Diopi), por sua vez controlada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) do MJSP. Desde março, por escolha do atual ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, a Senasp é comandada pelo ex-procurador-geral de Justiça de São Paulo Mario Luiz Sarrubbo.
Embora supostamente “rebaixado” à coordenadoria, o setor de inteligência continuou fortalecido dentro do MJSP e manteve a produção, em larga escala, de seus relatórios de inteligência. Desde a gestão de Flávio Dino, tais relatórios continuaram sob o manto do “sigilo eterno”, isto é, sem classificação prevista na Lei de Acesso à Informação (LAI).
Há sinais de que a área de inteligência do MJSP ganhou ainda mais importância no governo Lula. Um documento do MJSP de 2023, subscrito por Lula e Dino, anunciou o lançamento de um Programa Nacional de Enfrentamento das Organizações Criminosas (Enfoc). Segundo o governo, a iniciativa iria receber ao todo R$ 900 milhões.
De acordo com o documento, a Diopi tornou-se responsável pela coordenadoria-executiva do programa Enfoc. Um dos objetivos do Enfoc é justamente “expansão e aprimoramento do sistema de cercamento eletrônico – Córtex”.
Conforme a Pública revelou, o Córtex é uma plataforma que permite, entre outras coisas, monitorar e seguir carros e pessoas nas ruas e rodovias. O termo “cercamento eletrônico” se refere a uma funcionalidade do sistema que permite escolher determinado carro, a partir de sua placa, e passar a monitorá-lo ao longo de todo o dia e por tempo indeterminado.
Conteúdo da maioria dos relatórios é incógnita
A partir de uma interpretação do setor de inteligência que se valeu de uma portaria ainda hoje em vigor, assinada pelo então ministro Moro, os documentos do governo Bolsonaro nunca foram classificados nos três níveis previstos na LAI: reservado (sigilo de cinco anos), secreto (15 anos) e ultrassecreto (25 anos).
Fugindo dessas três classificações, eles foram considerados pelo MJSP como “restritos” e, dessa forma, representam a prática do “sigilo eterno” que Lula, então candidato à Presidência em 2022, havia prometido combater. Em um debate na TV Globo no primeiro turno das eleições, em setembro de 2022, Lula disse a Bolsonaro: “Eu vou fazer uma coisa, vou fazer um decreto acabando com seu sigilo de 100 anos para saber o que tanto você quer esconder por 100 anos”.
A prática do sigilo eterno, contudo, permaneceu inalterada ao longo do último ano e meio no setor de inteligência do MJSP.
Desde 2023, já no governo Lula, o MJSP se recusou por diversas vezes a atender pedidos feitos pela Pública por meio da LAI para ter acesso a uma simples listagem dos assuntos tratados nos relatórios durante o governo bolsonarista.
A Controladoria-Geral da União (CGU) chegou a determinar a liberação da listagem, mas, após uma reação do MJSP, ainda que fora do prazo legal, voltou atrás e desautorizou a liberação dos dados. O MJSP primeiro alegou que não poderia fornecer os documentos em virtude de um sigilo especial vinculado à atividade de inteligência. Após ter esse argumento derrotado, passou a dizer que o pedido era genérico e impossível de ser cumprido, no que foi apoiado pela CGU.
Tal comportamento do MJSP durante a gestão de Dino, apoiado pela CGU, rendeu ao ministério o irônico Prêmio Cadeado de Chumbo 2023, conferido pelo Fórum de Direito de Acesso a Informações Públicas e pela Rede pela Transparência e Participação Social, formados por diversas organizações não governamentais ligadas ao tema da transparência pública.
O MJSP ganhou o prêmio na categoria “Contorcionistas e malabaristas”, quando “o órgão responde ou nega acesso à informação utilizando argumentos sem fundamento, errôneos ou absurdos”.
Após a recusa da liberação da listagem, a Pública solicitou os relatórios sobre determinados tópicos: manifestações políticas, eleições, Amazônia e movimentos sociais. O MJSP então forneceu apenas dez documentos (do total, vale lembrar, de 4.569 relatórios produzidos durante o governo Bolsonaro).
A liberação do MJSP foi resultado de uma decisão anterior da CGU, sobre outro pedido feito pela LAI em 2023. A CGU disse que o ministério deveria liberar os relatórios solicitados sobre os temas listados desde que “não envolvam conteúdos próprios de atividades de inteligência e ainda eventuais relatórios com atividades de inteligência que tenham sido tarjados até o prazo de atendimento”.
É impossível saber quantos e quais são os relatórios tarjados ou quais relatórios o MJSP considera se encaixarem nos limites indicados pela CGU.
Alguns desses relatórios já liberados se tornaram reportagens na Pública. Conforme revelado em abril, quatro desses documentos falavam do baixo apoio das Forças Armadas às operações de retirada de invasores garimpeiros da Terra Indígena Yanomami de 2021 a 2022. Os outros documentos são apenas descrições superficiais de determinadas operações desencadeadas nos estados com apoio da inteligência do MJSP.
A Pública apurou que, desde a posse de Lula, em 2023, não foi adotada nenhuma iniciativa no sentido de fazer uma ampla avaliação dos relatórios da era Bolsonaro.
Pelo contrário, conforme a Pública revelou, durante a gestão de Dino um grupo de trabalho chegou a cogitar fazer uma auditoria sobre o passado do sistema Córtex, uma das ferramentas utilizadas para a produção dos relatórios de inteligência, mas voltou atrás e decidiu auditar apenas dali para “o futuro”.