Nesta quarta-feira (23), o projeto de lei que busca definir, entre outros pontos, um marco temporal para a demarcação de terras indígenas foi aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) do Senado. Diante da primeira derrota na Casa, o Ministério dos Povos Indígenas negocia para que a matéria tenha uma tramitação mais longa e passe pelas comissões de Direitos Humanos e Meio Ambiente antes de seguir para a de Constituição, Justiça e Cidadania. Esta seria a próxima etapa de tramitação antes da votação em plenário.
“O que estamos articulando e defendendo é que a tramitação siga o rito normal da Casa, que é passar nas comissões de mérito”, afirmou a ministra da pasta, Sonia Guajajara, em entrevista exclusiva à Agência Pública. “Passou na Comissão de Agricultura, que era totalmente a favor do PL, então é justo que passe pelo menos nas comissões de Direitos Humanos e de Meio Ambiente, onde a gente pode construir um diálogo e debater o projeto.”
O parecer da relatora Soraya Thronicke (Podemos-MS), favorável ao PL 2.903/23, cujo texto veio da Câmara, foi aprovado por 13 votos a 3 na CRA depois de realizada uma audiência pública.
Votação do PL 2.903/23 na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado nesta quarta-feira (23)
No entanto, após uma série de encontros com senadores ontem (22) para tratar do assunto, Guajajara avalia que os parlamentares não conhecem a fundo a proposta. “Senti que muitos focavam apenas no marco temporal e não analisavam os outros aspectos”, destaca.
Segundo lideranças e especialistas, a matéria traz uma série de outros ataques aos direitos indígenas, como a proibição da ampliação de terras já demarcadas e a relativização do usufruto exclusivo dos indígenas sobre seus territórios (leia mais aqui).
Por isso, a ministra considera que o projeto precisa ser melhor debatido. Ela quer encaminhar a demanda pessoalmente ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que em junho garantiu que o PL tramitaria “sem açodamento” na Casa, após ser aprovado na Câmara sob regime de urgência e pressão da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que defende o marco temporal.
“Ele [Pacheco] disse isso no início [do processo de tramitação do PL no Senado], lembro bem, a gente estava lá junto”, pontua Guajajara. “Mas não conseguimos mais falar com ele. Estamos na tentativa de conversar para pedir, inclusive, a tramitação nessas outras comissões.”
Caso a matéria passe por um número maior de comissões, existe a expectativa de que haja tempo para que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida pela rejeição ao marco temporal. Às vésperas de se aposentar, a ministra Rosa Weber deseja se manifestar sobre o tema ainda em setembro. Já votaram os ministros Edson Fachin, Alexandre de Moraes (contrários à tese) e Kassio Nunes Marques (favorável).
Mas senadores de oposição, sobretudo os ligados ao agronegócio, querem se antecipar ao julgamento. Se isso acontecer – ela admite que o cenário no Senado lhe é desfavorável –, ela enxerga um caminho. “Ele sendo aprovado, será questionada a sua constitucionalidade”, afirma.
Por que o Ministério dos Povos Indígenas defende que o PL 2.903/23 seja apreciado em outras comissões para além das de Agricultura e Reforma Agrária e de Constituição, Justiça e Cidadania?
O que estamos articulando e defendendo é que a tramitação siga o rito normal da Casa, que é passar nas comissões de mérito. Passou na Comissão de Agricultura, que era totalmente a favor do PL, então é justo que passe pelo menos nas comissões de Direitos Humanos e de Meio Ambiente, onde a gente pode construir um diálogo e debater o projeto. Temos de debater o projeto, os pontos sensíveis. Nem todo mundo conhece bem o projeto. Mesmo os senadores que estão para votá-lo não conhecem o ponto a ponto do projeto. A gente quer ampliar o debate para que a sociedade também o conheça e sejam ouvidas as partes interessadas.
Como estão as articulações para que isso aconteça?
Conversei ontem com vários senadores, com o líder do governo no Senado [Jaques Wagner, do PT-BA], com a bancada do PT no Senado, com a Soraya Thronicke [relatora do PL 2.903/23 na CRA], e hoje com o senador Alessandro Vieira [MDB-SE]. Pedi para que eles apresentem requerimentos e conversem com o presidente do Senado para possibilitar o trâmite nas comissões. Acho que há uma possibilidade. Todos os senadores se colocaram muito de acordo de que é realmente preciso ampliar o debate.
Ministra Sonia Guajajara articula para que projeto seja debatido em mais duas comissões antes de chegar à CCJ
O senador Jaques Wagner apoiou explicitamente a proposta de vocês?
Apoiou, sim, já de prontidão, a fazer o diálogo e tentar o trâmite nessas comissões.
Se não for possível que o PL passe por essas outras duas comissões, o que se espera da tramitação na CCJ?
De fato, como está hoje, a gente não tem no Senado votos suficientes para mudar [o entendimento da Câmara]. O PL passa, com ampla maioria, em todas as comissões, inclusive no plenário, de acordo com o que está colocado hoje. Mas a gente segue nas conversas e articulações com os senadores. Esperamos que na CCJ possamos abrir mais um espaço para ampliar o debate com audiências públicas, trazendo especialistas para falar. Ali não tem que haver um debate radicalizado, de ser a favor ou contra, mas sim colocar na mesa todos os pontos mais complexos que precisam ser compreendidos. E precisam ser construídos ali os pontos de consenso, porque há muitos pontos sensíveis que não serão bons nem para os indígenas, nem para o meio ambiente, tampouco para os próprios agricultores. É importante que isso seja realmente colocado na mesa e haja tempo hábil para discussão.
A base do governo está comprometida com a proposta de levar o projeto a outras comissões e, em última instância, tentar barrar sua aprovação?
Barrar eu não sei, porque a gente não tem ampla maioria no Senado ou na Câmara. Da parte dos líderes da bancada do governo, existe a disposição de que o projeto tramite nas outras comissões.
O presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) prometeu, em junho, que o PL 2.903/23 teria uma tramitação sem “açodamento” no Senado, em oposição ao processo atropelado que aconteceu na Câmara dos Deputados. Ele reforçou de alguma forma essa promessa recentemente?
Não. Inclusive, o que estamos fazendo é exatamente tentar uma reunião com o Rodrigo Pacheco para ter essa resposta dele. Ele disse isso no início [do processo de tramitação do PL no Senado], lembro bem, a gente estava lá junto. Mas não conseguimos mais falar com ele. Estamos na tentativa de conversar para pedir inclusive a tramitação nessas outras comissões.
A senhora tem esperança de que o STF conclua rapidamente o julgamento do marco temporal e decida pela rejeição da tese? Ainda faltam oito votos.
No Supremo, acho que já houve os pedidos de vistas necessários. Penso que não ocorrerá mais nenhum, e que o julgamento será concluído, até porque já se arrastou por muito tempo. Assim como haverá também uma discussão sobre um meio-termo, como já sinalizou o ministro Alexandre de Moraes no seu voto. Penso que tem alguns pontos no voto dele que precisam de ajuste. Espero que, nos votos seguintes, os ministros sigam, talvez, na mesma linha do Alexandre, mas tentando dar um aperfeiçoamento em alguns pontos que podem estar ainda meio conflituosos. Um exemplo é a necessidade de uma indenização prévia às demarcações, que ele apresentou. Algumas análises mostram que isso pode ser ainda mais conflituoso do que resolver a questão [do marco temporal].
Que ajuste seria esse?
A indenização prévia é bem inviável. Acho que um ajuste seria ter uma temporalidade de ocupação da terra. Que a indenização seja feita a partir de critérios estabelecidos a partir do período de ocupação [dos fazendeiros que estão dentro das terras solicitadas pelos indígenas]. Em seu voto, o ministro Alexandre se colocou totalmente contra o marco temporal, mas sugeriu a indenização prévia para a demarcação da terra. Mas isso também pode não ser a solução, e os outros ministros podem fazer algum ajuste nesse voto do Alexandre. O que eles vão apresentar, eu não sei.
Expectativa é de que o Supremo Tribunal Federal (STF) decida pela rejeição ao marco temporal
Mas tem algo que a senhora e o Ministério dos Povos Indígenas consideram ideal nesse sentido?
É uma discussão, acho que ninguém ainda tem uma proposta pronta. O que tem é isso de estar construindo algum melhoramento desse voto dele. Mas não tem nada fechado ainda.
Seria uma espécie de marco temporal, só que para as indenizações?
Não dá para pagar uma indenização pela terra nua, sem saber qual é o período de ocupação daquela terra por não indígenas. O que hoje se prevê na Constituição Federal é o pagamento das benfeitorias – se paga pelas benfeitorias feitas na terra. Mas o que o ministro Alexandre trouxe é o pagamento pela terra nua, que também pode não ser a solução. É preciso estabelecer critérios para esse pagamento, ele não pode ser feito só à revelia de uma ocupação. Tem que ter uma temporalidade para o pagamento das indenizações. Se for olhar ao pé da letra, o ideal seria uma indenização para os indígenas que ficaram fora da sua terra nesse período.
O que a senhora sugere é que as comunidades indígenas que sofreram o esbulho teriam também direito a uma indenização?
Exato, trazendo isso para ser justo, os indígenas que sofreram o esbulho também teriam que ter uma indenização.
O MPI ou a Funai têm algum levantamento sobre quanto custaria ao Estado as “indenizações prévias” propostas pelo ministro Alexandre de Moraes? É algo viável?
Não existe. Como não é uma coisa dada, não se tem esse levantamento ainda. Agora, estamos começando a trabalhar esse mapeamento, até para sabermos exatamente quais áreas precisam ser desintrusadas [etapa em que os ocupantes não indígenas são retirados], onde elas estão, qual a situação de cada uma, além desse levantamento orçamentário. É um trabalho que a gente está fazendo com a Funai.
A senhora disse recentemente, em entrevista, que a proposta do ministro Alexandre de Moraes poderia “apaziguar a situação” e evitar que os povos indígenas “percam” suas terras. Lideranças do movimento indígena se colocam contrárias ao voto de Moraes. Pode explicar melhor?
O que apazigua é que ele já se posicionou contra [o marco temporal]. Esse é o ponto de conciliação. Todos concordam que ele se colocou contra. Agora, é preciso estabelecer critérios para determinar como serão esses pagamentos de indenização. Porque, se não se indeniza, também não se demarca. E ficamos nessa guerra sem fim, onde não conseguimos amenizar os conflitos e os indígenas continuam sofrendo violências, mortes e assassinatos. Chegamos ao ponto em que precisamos encontrar uma alternativa. Por isso eu disse que estamos de acordo com o meio-termo que ele propôs, mas agora é necessário analisar cada caso. Não podemos ter um padrão de pagamento quando as realidades são tão distintas. Precisamos avaliar cada situação dessas terras para encontrar uma solução viável e dialogada.
Caso o julgamento do marco temporal no STF se prolongue, a senhora acredita que será possível barrar o PL 2903? Na semana passada, quando a CRA queria votar o relatório, muitos senadores, principalmente os bolsonaristas e os de oposição, argumentavam que a prerrogativa de decidir sobre essa questão é do Congresso. Alegavam que o STF não deve votar essa questão antes do Senado. Como vê esse cenário de prolongamento do julgamento e a pressão pela aprovação desse PL?
Eles têm ampla maioria e estão determinados a aprovar esse PL. Mas é importante trazer à tona os outros aspectos do projeto. Ele é conhecido como PL do Marco Temporal, o que faz com que muitos acreditem que se refere apenas a isso. Mas não é só isso; há outros pontos complexos e perigosos (veja reportagem da Pública com os 10 pontos polêmicos do projeto). Há a questão dos transgênicos, a heteroidentificação dos povos indígenas em caso de expropriação, a flexibilização de acesso a territórios de povos isolados e a questão do arrendamento. Precisamos esclarecer e debater todos esses pontos no Senado para as pessoas entenderem de fato do que se trata esse PL. Então, agora tem essa preocupação, claro, de o Supremo julgar ou não julgar, concluir ou não concluir, o Senado aprova ou não aprova, mas o que tá em jogo é muito mais que o Marco Temporal. O Marco Temporal ficou até sumido no meio dessas outras questões que estão dentro desse PL.
A senhora sentiu que os senadores com quem conversou desconheciam os outros pontos do PL, além do marco temporal?
Sim, senti que muitos focavam apenas no marco temporal e não analisavam os outros aspectos. A própria senadora Soraya tinha um ponto de vista sobre o que estava ali. Apresentamos nosso ponto de vista sobre alguns artigos, e ela disse que realmente não tinha olhado por aqueles ângulos, que não via daquela forma. A gente ficou ali debruçada a olhar um pouco mais alguns pontos. Ela disse que poderíamos ter tido mais tempo para debater. Percebi que havia esse desconhecimento e também a disposição de um aprofundamento.
Se o projeto de lei for aprovado, caberia a judicialização?
Certamente sim. Ele sendo aprovado, será questionada a sua constitucionalidade, e claro que tem pontos ali inconstitucionais. Na nossa leitura, a questão do Marco Temporal é totalmente inconstitucional.
No início do mês, durante a Cúpula da Amazônia, esperava-se que o governo anunciasse a homologação de ao menos algumas das terras indígenas cujos processos estão finalizados. Segundo a Folha de S. Paulo, a Casa Civil teria bloqueado as homologações. Por que isso aconteceu?
Houve, sim, a expectativa de que as assinaturas [das homologações] ocorressem na cúpula. Não é que houve um bloqueio, é que realmente não entrou na pauta. A análise do Itamaraty é que era um evento internacional, tinha outros presidentes, e não caberia ali um ato nacional, então, nem entrou na programação. A gente tinha sugerido essa data [9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas], foi uma data proposta por nós, inclusive, aqui do MPI. E virou uma especulação muito grande de que sairiam ou não sairiam [as homologações] naquele dia. Houve a proposta, a gente sinalizou positivamente que poderia acontecer, mas, no fim das contas, não deu certo. Agora, o que a gente está tentando construir é um cronograma junto ao Ministério da Justiça e à Casa Civil para que se possa assinar as oito homologações que faltam [havia a expectativa, durante o Acampamento Terra Livre, em abril, de que 14 terras indígenas seriam homologadas, mas apenas seis foram anunciadas na ocasião]. Conversei com o Flávio Dino também sobre isso ontem e vamos apresentar uma proposta.
A ideia é que essas oito homologações pendentes saiam até o fim do ano?
É, estamos trabalhando para que essas oito saiam até o final do ano. Se vão sair ou não, é outra questão, mas estamos trabalhando para isso. E esperando que saiam.