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O Plano Diretor de São Paulo “é uma espécie de libera geral”, diz urbanista

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DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

De acordo com dados do último censo do IBGE, São Paulo possui 600 mil imóveis vazios. Ao mesmo tempo, a cidade concentra 25% de toda a população em situação de rua do Brasil, conforme levantamento realizado pelo Observatório Brasileiro de Políticas Públicas. E, ainda mais paradoxalmente, a capital vive o “maior boom do mercado imobiliário” dos últimos anos, conforme afirma a urbanista Raquel Rolnik, no episódio 81 do podcast Pauta Pública, que foi ao ar na última sexta-feira (21).

Rolnik é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) e possui doutorado pela Universidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. Ela exerceu a função de diretora de planejamento de São Paulo durante a gestão de Luiza Erundina (Psol), entre os anos de 1989 e 1992, além de ter sido secretária nacional de programas urbanos do Ministério das Cidades no primeiro mandato do presidente Lula (2003 a 2006).

Ao longo da conversa, Rolnik discute o futuro da urbanização e destaca a importância dos movimentos sociais diante do esgotamento das políticas públicas voltadas à inclusão.

Leia os principais pontos da entrevista e escute o podcast na íntegra abaixo.

EP 81
Planejamento urbano ou especulação? – com Raquel Rolnik

Podcast recebe urbanista em uma conversa sobre planejamento urbano e inclusão social




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[Pauta Pública] Sobre o novo Plano Diretor de São Paulo, o que muda e quais são as suas principais críticas à essa proposta?

O Plano Diretor da cidade, que estava em vigor desde 2014, introduziu uma espécie de nova estratégia para organizar as formas de uso e ocupação do solo na cidade. A proposta era concentrar prédios mais altos com muito mais gente perto do metrô, do trem e dos corredores exclusivos de ônibus, com a esperança de fazer com que as pessoas que usam transporte coletivo pudessem morar perto dele. Portanto, não depender de carro e poder ter uma vida muito mais confortável. E também, democratizar os locais onde passam o transporte coletivo de massa, que sabemos que não é em toda a cidade.

Naquele momento então, o plano deu uma série de incentivos para o mercado imobiliário poder atuar. Ao mesmo tempo, também exigiu uma série de contrapartidas por parte do mercado. Foi pensado um modelo em que a gente ia ter residência em cima e comércio embaixo, com uso misto, o que é chamado de fachada ativa. Também regulou-se o tamanho máximo dos apartamentos, construindo prédios muito mais densos para mais gente poder ir morar efetivamente.

Nessa estratégia de 2014 já estava prevista, depois de cinco anos, uma revisão para eventuais ajustes. Com a pandemia, acabamos adiando a revisão e retornando o debate com mais intensidade este ano. A hora que a gente foi fazer a revisão, muitas pessoas que moravam em bairros que ficavam perto dos eixos de transformação [do Plano Diretor] começaram a sentir uma transformação radical do bairro. Porque a forma como ele foi formulado permitiu uma série de consequências que não eram previstas. 

O processo de revisão colocou tudo isso em discussão. Quando o relator final do processo de discussão da Comissão de Política Urbana na Câmara apresentou um substitutivo, ao invés de atender essas necessidades de ajustes, o que ele fez? Dobrou a aposta. Então, ao invés de serem quatrocentos metros em torno das estações de metrô, agora vão ser mil; ao invés de trezentos metros em torno dos corredores de ônibus, agora são quinhentos. Ampliando muito mais [a extensão das obras], além de pegadinhas para permitir que no miolo se verticalize mais, o que é na verdade é uma espécie de libera geral. 

É, na prática, uma desestruturação da proposta original, em um contexto em que o mercado imobiliário, mais do que servir às pessoas e às suas necessidades de morar, serve à necessidade de um capital financeiro excedente, o que a gente chama de especulação imobiliária. Nós vivemos o maior boom do mercado imobiliário nos últimos anos na cidade de São Paulo, e, ao mesmo tempo, a maior crise habitacional que nós já tivemos neste século.

[Pauta Pública] Essa revisão é política? É possível enxergar a mão dessa nova gestão nesse plano?

[O Plano Diretor] teve esse enorme apoio dentro da Câmara. Em português claro, historicamente o mercado imobiliário, as construtoras e incorporadoras sempre tiveram um enorme poder na Câmara, porque a canetada da câmara no Plano Diretor e no zoneamento define a rentabilidade do negócio desse segmento. A própria linguagem do plano diretor, os assuntos, como coeficiente de aproveitamento atual, construir zona especial, eixo de estruturação, essa linguagem é uma linguagem imobiliária. A conversa do plano diretor é imobiliária e isso é histórico. Isso não é dessa gestão nem da gestão anterior. 

E por que que a gente tem um apoio tão irrestrito? Eu posso afirmar com absoluta certeza que é tão complexa essa linguagem, que boa parte dos vereadores nem leram o plano, eles aprovaram porque é a lógica da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa e do Congresso Nacional. É uma lógica em que o apoio ou não a projetos que o executivo manda tem pouco a ver com o conteúdo do próprio projeto, e tem mais a ver com os benefícios que os vereadores vão receber para as suas bases políticas. Infelizmente é essa a lógica que a gente tem, mas não é exclusivamente na Câmara Municipal de São Paulo, eu diria que é uma lógica geral do processo decisório político no Brasil, que alguns chamam de centrão – que é o que está definindo o nosso destino. 

[Pauta Pública] De que maneira essa lógica opera para perpetuar desigualdades na cidade? Quais os caminhos para enfrentá-la?

Hoje eu faço uma leitura muito mais crítica da própria linguagem, da própria epistemologia do plano, do saber, do olhar sobre a cidade, que ele pressupõe que é colonialista, que é machista, que é racista. E que está baseado nos produtos imobiliários e está baseado numa forma de produção da cidade que está absolutamente superada do ponto de vista ambiental. Porque esses artefatos que a gente está produzindo, esses rios enterrados, essas torres enormes de concreto, não dialogam nada com a crise climática. Não dialogam nada com a transformação e a necessidade da renaturalização que nós temos na nossa cidade, não dialogam nada com a necessidade da transição energética, porque eles são puro consumo do petróleo, de ferro, da forma extrativista mais violenta. E tem uma linguagem que só dialoga com o setor imobiliário, então hoje o que nós vamos ter que fazer é muito mais profundo e radical. 

Agora eu vejo um movimento importante, interessante tanto na academia, de profissionais, mas também nos próprios movimentos sociais. Me parece que a luta antirracista, a luta feminista coloca essas questões, eu acho que no mundo da crítica socioambiental também. Uma nova prática que vai ter que substituir essa, porque essa daqui realmente se esgotou. Acompanhando a discussão do plano diretor, eu tive o sentimento de como o próprio paradigma includente e democrático foi derrotado dentro dessa composição política.

Dito isso, tem iniciativas sensacionais que vão nessa direção que já estão acontecendo: a luta das ocupações para serem reabilitadas a partir de outras lógicas, das ocupações organizadas, a luta pelo Parque do Rio Bixiga, a luta da Saracura Vai Vai, por ter outro modelo ali naquele território, acho que todos são indicações muito importantes de movimentos na cidade que estão tentando ir numa outra direção.

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