Em vídeos obtidos pelo Metrópoles, testemunhas detalham os abusos sofridos pelo ex-sargento Laci Marinho de Araújo durante o período em que ele ficou detido no Batalhão de Polícia do Exército, no Distrito Federal, em 2008. O militar e o também ex-sargento Fernando Alcântara de Figueiredo formam o primeiro casal gay a se revelar no Exército Brasileiro. Há mais de 17 anos, eles denunciram crimes de tortura nas dependências do instituição, mas, agora, novas informações jogam luz sobre o caso.
“Eles [militares] entravam na cela. Aquele tanto de soldado encapuzado baixava a porrada nele de um jeito que a gente não conseguia levantar para comer durante dois, três dias. […] Ele [Laci] sofreu porque era homossexual. Ele era um homem forte, mas ficava mole de tanto apanhar. Torturaram bastante, enquanto o chamavam de gay. Foram desumanos com ele, tanto que virou história entre os outros presos. [Militares] usavam ele de exemplo para quem estava ali [encarcerado]”, relatou uma testemunha que ficou presa próximo a Laci.
Veja:
Os episódios envolviam espancamentos, ofensas e tortura psicológica, inclusive com uso de escorpiões, segundo testemunhas ouvidas no âmbito do inquérito aberto pela Polícia Federal (PF) para investigar as denúncias. A motivação por trás dos crimes também teria relação com a orientação sexual da vítima, de acordo com os relatos. O caso segue sob análise das justiças brasileira e internacional.
Ainda na oitiva à PF, registrada em 2022, o depoente afirmou: “O que mais sofreu lá dentro foi ele [Laci]. O caso dele foi mais absurdo, porque [ele apanhava] apenas por ser homossexual. E eles [os militares] incitavam a gente contra ele também. […] Ficavam falando mal dele para a gente e diziam: ‘Como vocês permitem entre vocês um cara que é assim?’ Queriam que a gente excluísse e agredisse ele”.
Segundo a testemunha, além do que viu, era possível ouvir gritos e “pancadas” do local onde ficava o ex-sargento. “Ele [Laci] foi muito maltratado. E a gente [os outros presos] estranhava ainda mais [a situação], porque [a vítima] era um sargento. Tempos depois, chegou um tenente que atirou na mulher em um condomínio, em Sobradinho, e o cara era bem tratado”, detalhou.
Apesar da gravidade das declarações, devido ao tempo que o inquérito demorou para ser finalizado, a PF pediu pelo arquivamento das investigações.
Inconformado, Fernando Figueiredo, que hoje atua como advogado criminalista, revisou o material e encontrou os vídeos com as alegações, cujos conteúdos não haviam sido informados à vítima.
Depois disso, entrou com mandado de segurança na Justiça – tipo de recurso para proteger direitos de pessoas que se sentem violadas por autoridades públicas – e conseguiu impedir a finalização das apurações.
Desvio de verbas
Meses antes do início da tortura e da perseguição que o casal de ex-sargentos denunciou ter sofrido dentro do Exército, Fernando e Laci entraram em choque direto com a cúpula militar, após delatarem supostos desvios de verba por oficiais graduados.
À época, Fernando identificou irregularidades em processos licitatórios entre uma empresa fornecedora de produtos hospitalares e o Hospital Geral de Brasília (HGeB), gerido pelo Exército e onde trabalhava. Posteriormente, o HGeB foi renomeado para Hospital Militar de Área de Brasília (Hmab).
Também depois da denúncia, Fernando teria sido ameaçado por um representante da empresa supostamente envolvida. Como represália, acabou afastado do cargo e transferido para a Região Sul do país, enquanto Laci foi mandado para Osasco (SP), longe do companheiro.
Nessa época, Laci estava afastado das atividades devido a um problema de saúde. Após a transferência para a cidade paulista, o ex-sargento não compareceu ao novo posto e foi considerado desertor. O casal considerou as consequências como perseguição motivada pelas revelações.
Por fim, Fernando pediu desligamento do Exército, e Laci respondeu a um processo interno por deserção, o que poderia resultar na expulsão dele. Contudo, diante das evidências de que a perseguição lhe causou transtornos psicológicos, acabou transferido para a reserva – e com direito a receber só uma parte do salário. Hoje, ele também cobra na Justiça o pagamento integral da verba.
Coronel gravado
Em dezembro de 2006, dois anos antes da prisão de Laci e pouco depois de Fernando denunciar o suposto caso de corrupção à corporação, o general Ademar da Costa Machado Filho, à época à frente da 11ª Região Militar, no Distrito Federal, foi gravado durante reunião se referindo ao casal como “veados” e planejando a prisão da dupla.
“Quem pôs o Alcântara e o De Araújo no hospital? Esse cara [sem mencionar quem] estava ruim na PE [Polícia do Exército], mandaram para a região não sei o quê, jogam no hospital e, hoje, está sacaneando todo mundo. E nós deixamos. Você entendeu?”, começou.
“Espera aí. Um é veado, o outro é o que come o veado. E moram juntos. Eu tenho de comprovar isso. […] Joga ele [Laci] na Vila Militar do Rio de Janeiro. Vai morar na favela. Entendeu? E manda o marido dele para o Rio Grande do Sul”, completou Ademar.
Em seguida, o general fez referências a “velhos tempos” e diz “sentir saudades” de como as coisas eram feitas: “A gente manda o sindicante na casa do De Araújo, e ele não abre a porta. Não abre a porta. No velho Exército, em que você começou a vida, a gente dava uma porrada, abria e pegava à força. Que saudade dos velhos tempos. Você metia o pé na porta. Esse cara [Laci] já estaria fora do apartamento”.
“Dei uma detenção e, agora, estou querendo dar prisão. Mas [sem mencionar nome] está em dispensa médica. Não consegui pegar esses caras, e nós ficamos reféns desses canalhas”, admitiu o general.
Corte Interamericana
Os casos da tortura e da perseguição foram levados à Organização dos Estados Americanos (OEA) pela organização não governamental (ONG) Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) após o processo que corria no Superior Tribunal Militar (STM) ser finalizado, em todos os graus de recursos e sem análise do mérito.
Na OEA, a Corte Interamericana, responsável pela análise, entendeu haver no caso um número considerável de violações aos direitos descritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), documento do qual o Brasil é signatário.
Atualmente, há um pedido do Brasil, que é réu no processo, para que a ação seja destacada para avaliação de possível acordo.
Fernando, contudo, afirmou à reportagem que o casal não abre mão da investigação do caso nem da necessidade de punição pelos crimes de tortura. “Para nós, é fundamental que não haja anistia. Se percebermos uma tentativa disso, não faremos acordo”, enfatizou.
Posicionamentos
A ação segue sob relatoria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Por meio de nota enviada ao Metrópoles na sexta-feira (14/2), o Exército Brasileiro informou que o caso resultou em um processo que tramitou no STM e, “respeitando todos os prazos e trâmites legais, foi encerrado e arquivado”.
Também por meio de nota, a Procuradoria-Geral da República (PGR), do Ministério Público Federal (MPF), detalhou que se manifestou junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) pelo acolhimento do recurso apresentado pela defesa de Laci para continuidade das apurações até que haja uma decisão definitiva no processo.
Com a análise da manifestação, o TRF-1 entendeu que a decisão pelo arquivamento do inquérito se revelou “manifestamente ilegal”. Assim, o caso retornará para a primeira instância.