Foi na noite de sexta-feira, dia 18 de novembro de 2016, que a decisão foi anunciada. Já passava das 22h quando estudantes da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) ocuparam o campus contra uma das principais bandeiras do então presidente Michel Temer (MDB) — a PEC do Teto dos Gastos.
A ação, que montou barricadas na sede da UTFPR-Curitiba, no centro de Curitiba, foi também uma forma de apoio às centenas de ocupações estudantis que ocorriam em outras universidades e escolas de Ensino Médio por todo o Brasil naquele ano. Além de serem contra a PEC, os estudantes se rebelavam contra a MP 746, que retirava do currículo obrigatório disciplinas como Filosofia e Sociologia; e o PL 193, o infame “Escola sem Partido”.
Durou uma semana. Na madrugada da sexta-feira seguinte, 25 de novembro, os portões da universidade foram abertos à força pela Polícia Federal. Antes de o sol sair, bombas de gás explodiram no campus. Estudantes foram detidos e fichados pelos policiais. A “Ocupa UTFPR” terminou naquele mesmo dia.
O encerramento da ocupação, contudo, não significou um fim dessa história para os estudantes. O processo de reintegração e manutenção de posse movido pela Universidade contra os estudantes estudantil e 54 jovens se estenderia por anos, exigindo que os alunos pagassem multa de R$ 10 mil. Segundo apuração da Agência Pública, a disputa judicial permaneceu até este ano, quando finalmente o processo foi encerrado.
Além dos estudantes, um grupo de pelo menos dez professores foi processado administrativamente sob a alegação de terem participado dos atos.
Assim como os estudantes da UTFPR, em 2016 estudantes do Ensino Médio da rede pública de todo o país ocuparam centenas de escolas contra a Medida Provisória 746 e a PEC do Teto de Gastos (a PEC 241 na Câmara, e 55 no Senado). Há registros de ocupações desde os primeiros meses do ano, que influenciaram a ocupação também de universidades. Em outubro, a UBES divulgou uma lista de mais de mil instituições ocupadas, incluindo escolas de Ensino Médio, institutos federais e universidades. O estado do Paraná liderava a quantidade de locais ocupados.
Em ano de ocupações estudantis, universidade processou alunos
A queda de braço judicial da Universidade Tecnológica Federal do Paraná contra as ocupações começa, na verdade, bem antes de novembro de 2016. Em 8 de junho do mesmo ano, a instituição já havia acionado o Ministério Público Federal do Estado contra os estudantes que ocupavam o prédio da Reitoria.
Na época, mais de cem jovens protestavam contra o fechamento de cursos profissionalizantes de Mecânica e Eletrônica da instituição. Segundo a Reitoria, eles estavam em processo de extinção gradativa.
No pedido de tutela de urgência para a reintegração de posse, a Procuradoria Federal do Paraná, que representava a universidade, chegou a afirmar que “muitas das manifestações presenciadas nos últimos meses, em todo o país, têm se mostrado abusivas”. O texto dizia ainda que “em ocasiões anteriores, instituições de ensino já experimentaram ocupações das mais inflamadas e descontroladas, das quais resultaram danos consideráveis, alguns irreversíveis”.
Dois dias depois do pedido, na tarde de 10 de junho, a juíza federal substituta Soraia Tullio intimou o grêmio estudantil a desocupar a reitoria em 72 horas, sob pena de multa diária de R$ 5 mil. À noite, o prédio já estava vazio.
Em novembro, chegou a vez de novas ocupações na UTFPR — desta vez, contra a PEC do Teto de Gastos e em apoio às demais reivindicações estudantis que sacudiam o Brasil naquele ano. Parte da juventude que se mobilizou nas escolas e universidades em 2016 havia participado das jornadas de junho de 2013. Alguns eram crianças. Outros, já estudantes.
Segundo o processo, ao qual a Pública teve acesso, a Procuradoria Federal tentou utilizar o pedido iniciado em junho para expulsar os estudantes de novembro. Foram anexadas postagens de um grupo anti-ocupação, que chamava de marginais pessoas que tentavam integrar o movimento.
No documento, consta que a administração da universidade chegou a entrar em contato com a Polícia Federal. A instituição, contudo, foi informada que seria necessário um novo mandado judicial para expulsar os jovens.
No dia 19 de novembro — um dia após o comunicado de início da ocupação — a Universidade apresentou o pedido de reintegração de posse. O reitor na época era o professor Luiz Alberto Pilatti. O mandado com a intimação saiu no mesmo dia, a partir da decisão da 16ª Vara Federal de Curitiba. Mas desta vez, os estudantes não saíram.
“Nós, parte do movimento estudantil da Universidade Tecnológica Federal do Paraná continuamos ocupando o campus do Centro Curitiba”, postou o movimento Ocupa UTFPR no dia seguinte. “Resistimos a diversos ataques verbais e físicos de cabeça erguida pois sabemos da legitimidade da nossa luta, que é por uma pauta nacional”, completaram.
Segundo documento que a reportagem acessou, apesar do pedido de urgência pela UTFPR, a Polícia Federal tentou ganhar mais prazo para a desocupação. O delegado Adriano Rochinski argumentou que seria necessário “efetuar um planejamento” para que a operação “seja exitosa e que existam o mínimo de lesões”. No comunicado, o oficial reconheceu que ações do tipo “podem causar sérias lesões corporais, pois são utilizadas armas menos letais, tais como granadas de gás (pimenta, lacrimogênio etc), armas com munições de borracha, escudos”.
Foi exatamente assim que ocorreu a desocupação, segundo estudantes e professores com quem a reportagem conversou. Eles contaram que a Polícia Federal entrou no local de madrugada explodindo granadas e arrombando portas. Há relatos de ameaças verbais e intimidação.
“A polícia começou a bater e pedir para entrar, mas como não tínhamos nem acesso ao cadeado, eles acabaram explodindo a porta. Boa parte das pessoas estava dormindo, eu inclusive. Acordei com o barulho da bomba e, antes que pudesse me localizar, fui confrontado com uma arma na cara e xingamentos do tipo ‘vagabundo’. Fomos levados para uma quadra onde todo mundo ficou de joelhos por quase quatro horas enquanto eles iniciavam o processo de cadastramento e procuravam [mais estudantes] no restante do campus”, contou à Pública o então estudante de Arquitetura e Urbanismo Rafael Pivetta, que participou da ocupação.
Segundo o jovem, apesar de não ter sofrido ferimentos, ele passou por episódios de pânico noturno durante meses após a ação policial. Além disso, havia os processos administrativos e judiciais abertos pela universidade contra os ocupantes. “Quem já estava mais próximo da graduação foi mais afetado. E [eu]. como parte do Centro Acadêmico e do conselho do Departamento de Construção Civil, fui muito marcado. A maior perseguição, em especial psicológica, veio dos próprios alunos, tivemos cartas, feitas com nossas caras, apelidos. Uma série de ataques em grupos do Facebook. Foi especialmente difícil para pessoas de cursos mais conservadores, como as engenharias. Uma amiga que participava até desistiu do curso, por conta da marcação dos professores e colegas”, relatou.
Em 2023, multa de R$ 10 mil para os estudantes de 2016
Segundo os documentos obtidos pela Pública, a UTFPR requisitou, dias antes da ação policial que, além da desocupação, houvesse a identificação dos estudantes. A universidade queria nomes para conseguir multar individualmente os alunos no valor de R$ 10 mil. No processo, teriam sido identificados 54 jovens que estavam na ocupação. A instituição também pediu uma multa de R$ 50 mil ao grêmio estudantil.
Na defesa, o grêmio argumentou que a multa seria desproporcional e que “quase a totalidade é formado por estudantes que necessitam de bolsa-auxílio da universidade para poder permanecer estudando, ou mesmo por estudantes secundaristas”. A Pública conversou com o advogado dos estudantes, que afirmou que, além do processo de reintegração de posse e multa, os estudantes da UTFPR foram alvo de processos administrativos. “Com processo aberto, você não consegue se formar. Houve estudantes que tiveram a formatura atrasada por conta disso”, falou Victor Leme.
A reportagem também apurou que ao menos oito professores foram alvo de processos disciplinares, mas que teriam se resolvido no ano de 2018.
A Pública questionou a assessoria atual da UTFPR sobre por que processar os estudantes e exigir a cobrança de multa. Em nota, a assessoria respondeu que, “à época da ocupação, “além das atividades de ensino, pesquisa e extensão, serviços administrativos foram interrompidos. Um deles, em especial, era o fechamento da folha de pagamento dos servidores docentes e técnico-administrativos da Universidade. Frente a isso, a Procuradoria Federal junto à UTFPR entrou com ação judicial para desocupação e continuidade dos serviços, a qual foi aceita pela Justiça”, informou.
Em maio de 2017, seis meses após a ocupação, o processo de reintegração movido pela universidade sofreu um revés: o juiz federal Marcos Araújo dos Santos decidiu extinguir a ação, argumentando que a UTFPR já havia sido desocupada e a instituição desistido do pedido inicial de perdas e danos. A universidade recorreu da decisão, pedindo novamente a condenação dos jovens. Após uma série de embargos sem resolução, o caso passou à instância superior.
Seria apenas em maio de 2021 que a 3ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região decidiria por unanimidade negar a apelação da universidade contra os estudantes. Na decisão do desembargador Rogério Favareto, ele cita que a ocupação terminou há mais de quatro anos, e que não havia risco de novos movimentos semelhantes.
A UTFPR, contudo, não desistiu. No mesmo mês, a Procuradoria, em nome da universidade, apresentou novos embargos e, uma vez mais, exigiu o pagamento da multa pelos estudantes. Segundo a assessoria da instituição, a Procuradoria apresentou recursos pois “faz parte do seu rol de obrigações irrenunciáveis, característica das advocacias públicas”.
A disputa judicial renderia por meses a fio, embargo após embargo, recurso atrás de recurso. Em 2022, o processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça.
O fim de toda essa querela judicial se daria apenas em 2023. Em março deste ano, ocorreu o trânsito em julgado no STJ, que negou, pela última vez, as tentativas da UTFPR de cobrar a dívida dos estudantes. Em abril, o processo foi baixado definitivamente — isto é, encerrado — no TRF da 4ª Região: quase sete anos após a ocupação.