Quase três milhões de hectares de terras do Rio Grande do Sul perderam a fertilidade após o impacto das enchentes que devastaram o estado em maio, segundo a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater). A enxurrada levou parte dos nutrientes necessários para o plantio, tornando necessário um plano de recuperação do solo que pode durar meses ou até anos, dependendo do estrago.
Mas isso não aconteceu no assentamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) Integração Gaúcha em Eldorado do Sul, região metropolitana de Porto Alegre.
O local foi tão afetado quanto o resto da cidade, que chegou a ficar 100% submersa. Todo o plantio ficou debaixo da água e foi perdido, assim como toneladas de produtos que estavam armazenados. Mas a produção foi retomada menos de três meses depois do desastre, ao contrário de outras propriedades rurais da região, que ainda tentam se recuperar dos estragos.
A diferença foi o tipo de manejo do solo realizado pelos assentados. Em vez de deixar a terra “pelada”, só com o plantio da estação, o assentamento tem uma cobertura vegetal rica. E, em vez de produzirem só um determinado tipo de produto, eles respeitam as épocas dos alimentos e fazem rotação de culturas. Isso ajudou a brecar a erosão e, consequentemente, a perda de fertilidade.
Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) analisou amostras do solo do local e atestou que a qualidade do solo se manteve quase inalterada.
Por que isso importa?
“Nós procuramos fazer uma série de ações de apoio após a catástrofe em Eldorado do Sul. Uma das ações foi a coleta de amostras de solo, para verificar possíveis alterações resultantes da enchente. O que percebemos foi que, na verdade, não houve alteração significativa nas características físicas e químicas”, disse o professor Paulo César do Nascimento, um dos autores. “Os resultados são típicos para aqueles solos que são utilizados para o cultivo de hortas. Por exemplo, o solo não está ácido e temos teores altos de nutrientes como fósforo e potássio”, continua.
Ele explicou que o terreno de Eldorado do Sul é relativamente plano, fazendo com que a enxurrada não tivesse tanta força quanto em outros lugares do estado. Isso ajudou a manter parte da cobertura. Ainda assim, a área ficou quase 30 dias como se estivesse dentro de um grande lago.
“Pode-se avaliar que o manejo também ajudou, principalmente pela manutenção do solo coberto, rotação de culturas, entre outros. Então, pode-se dizer que o manejo característico do sistema de produção orgânico teve uma contribuição para manter as características do solo praticamente inalteradas”, explicou o professor.
Poder-se-ia argumentar que isso faz sentido para a produção familiar, em pequenas propriedades, mas não é o caso. O assentamento tinha a previsão de colher mais de 100 mil sacas de arroz apenas nesta safra – ou 7,5 mil toneladas. A produção de hortaliças também é grande, e abastece as feiras orgânicas da capital.
Ervas e hortaliças produzidas no assentamento do MST
Assentados querem se mudar
O Integração Gaúcha foi criado no início dos anos 1990, com famílias de várias regiões do Rio Grande do Sul. O local era do Instituto Rio Grandense do Arroz, mas estava abandonado – tinha apenas algumas árvores esparsas. Ao longo das últimas três décadas, os moradores o transformaram em um dos maiores produtores de arroz orgânico do estado, além da produção de leite e de mais de cem tipos de hortaliças que são vendidas em feiras da região de Porto Alegre.
O assentamento fica a mais de cinco quilômetros de distância do rio Jacuí, então, apesar de ser uma região que costuma ter alagamentos, eles não costumavam chegar até a área do MST.
No dia 2 de maio deste ano, porém, a água chegou. As famílias receberam o aviso de que deveriam deixar suas casas, mas estavam descrentes. Treze pessoas que demoraram a sair tiveram que ser resgatadas depois, com um barco comprado com vaquinha dos próprios assentados.
De acordo com os moradores, a prefeitura de Eldorado do Sul não enviou ajuda a tempo – até porque o município inteiro estava em estado de calamidade –, então tiveram que se virar. Ainda assim, o assentamento hoje doa mais de mil marmitas por dia para abrigos na cidade e em Canoas, com alimentos produzidos no local.
José Mariano Matias, um dos assentados, achava que as maiores dificuldades que passaria na vida seriam os cinco anos e meio acampado antes de o terreno ter sido destinado à reforma agrária e, depois, o período da pandemia, quando as vendas caíram e a produção se tornou praticamente para subsistência. Mas nada se comparou à enchente.
“A gente está aqui há 33 anos e nunca tinha vivido nada deste tipo. A maioria saiu com a roupa do corpo, foi uma prova de resistência”, afirma.
Seu filho, Gabriel Matias, que estuda agronomia, diz que, apesar de o impacto ter sido grande, o trabalho agroecológico deixou a terra mais íntegra. “A cobertura do solo formou uma barreira que não deixou a água levar”, diz. “E, por ser um solo rico, formou-se uma ‘casquinha’ na superfície que não deixou a água penetrar.”
Os agricultores acharam que iam demorar um ano para voltar a produzir e se surpreenderam com a resposta rápida do solo. “É muito tempo trabalhando de forma ecológica, então a terra se protegeu”, afirma Rose Porto, outra assentada.
Assentamento do MST fica a mais de cinco quilômetros de distância do rio Jacuí
Logo depois do desastre, a maioria das famílias queria reivindicar uma nova terra. Agora, após o início da retomada da produção, o número baixou, e estima-se que menos de um terço ainda tem esse desejo.
Amarildo Mulinari, produtor de arroz, é de uma das famílias que quer deixar o lugar por medo de novas enchentes. Neste caso, as famílias têm que ser inseridas novamente na fila da reforma agrária e aguardar por novas terras destinadas a esse fim.
“Esse desastre tem nome, é a ganância do agronegócio. É descarada a destruição dos biomas. Não temos dúvida que a água vai voltar porque os rios vão assorear, não tem mata ciliar. Nós somos só um pedacinho, não adianta só aqui fazer certo e todo o resto continuar desse jeito”, diz.
Amarildo mostra arroz produzido pelo MST
“Continuamos apoiando o governo, mas a ajuda não está chegando na ponta”, reclama, sobre a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que é historicamente alinhado ao MST. Mulinari diz que os assentados receberam os R$ 5,1 mil de auxílio do governo federal, como todos os outros impactados pelas enchentes, mas precisam de ajuda para retomar a produção como era antes. Uma bomba para irrigação de arroz, que foi perdida na enchente, custa R$ 35 mil. “Nós doamos dez caminhões de alimentos durante a pandemia, mais de 54 mil marmitas para os desabrigados só em julho. Queremos colaborar, mas também precisamos de ajuda.”
Arroz e alface produzidos pelo MST no assentamento Integração Gaúcha
O governo federal informou, em nota, que está tomando medidas para as áreas de reforma agrária atingidas pelas enchentes através do Incra. Foram abertos um total de R$ 172,8 milhões em créditos extraordinários para essas demandas. Em Eldorado do Sul, 390 famílias serão atendidas com acesso a crédito e 79 pela linha habitacional, para as que tiveram as casas danificadas.
“Paralelamente”, diz a nota, “o Incra também oficiou a Secretaria de Desenvolvimento Rural do Rio Grande do Sul manifestando a intenção de identificar potenciais imóveis rurais de propriedade do governo estadual para aquisição onerosa e destinação ao reassentamento. Além disso, a regional do Incra está realizando avaliações em áreas ofertadas por particulares, e prospectando imóveis junto ao Banco do Brasil e em cadastros de devedores da União.”