No ano de 2020, em meio à pandemia do coronavírus, uma casa se tornou um refúgio para mães solo que chegavam em Pacaraima, município no norte de Roraima, na fronteira do Brasil com a Venezuela. É a Casa de Acolhida de São José, fundada pela irmã Ana Maria da Silva, de 64 anos, que enfrentou as polícias Federal e Civil do estado para manter o local aberto e se tornar um símbolo de solidariedade em tempos difíceis.
Na terceira reportagem da série Segredos da Operação Acolhida, a Agência Pública conta a história da casa que já chegou a abrigar mais de 200 mulheres, mães e crianças de uma vez, que não conseguiram se instalar nos espaços da Operação. Hoje, o local abriga cerca de cem pessoas. Para que não fiquem nas ruas, a casa da irmã Ana as acolhe temporariamente, onde são servidas três refeições diárias e compartilhadas orientações para retirada de documentos.
As refeições chegam por intermédio da própria Operação Acolhida, que envia marmitas à Casa São de José todos os dias. A conquista só foi possível porque um dos militares da operação, em 2021, visitou o espaço e se compadeceu da irmã. A residência recebe auxílio também da Pastoral do Migrante, organizações não governamentais e da sociedade civil.
Por que isso importa?
Madre Maria, como é conhecida pelos venezuelanos
Embora não ostente o título de madre, se dependesse das venezuelanas que moram na casa, a irmã Ana Maria da Silva teria os votos perpétuos da Igreja Católica para mudar a titularidade.
Chamada de Madre Maria, a líder da Casa de São José tem um sorriso largo, marcante, que manteve durante toda a entrevista à Pública.
A sua rotina de cuidados começou aos 13 anos, quando teve que trabalhar como babá para ajudar os pais, em Nova Prata, no interior do Rio Grande do Sul. Após ter entrado para a Igreja Católica, ao longo de sua vida esteve em missões humanitárias na Bolívia e em países africanos.
“Meu foco sempre foi criança e mulher, porque eu via muito a situação da opressão, do sofrimento da mulher na família […]. O machismo, o maltrato com a mulher e com as crianças”, contou a irmã.
A irmã Maria chegou em Pacaraima em 2018, no auge da crise humanitária de migração, quando nasceu a Operação Acolhida. De acordo com ela, havia um grande número de pessoas vivendo nas ruas do município sem acesso a banho, alimentação de qualidade e espaço adequado para dormir.
Ela fundou a Casa São de José dois anos mais tarde, em 2020, numa época em que a entrada de estrangeiros no país estava restrita, devido à pandemia.
Apesar de ser destinada às mulheres, a casa leva o nome de um santo masculino. O motivo é que o abrigo só foi alugado no último dia de março, quando é celebrado o mês de São José. “Eu disse: ‘Foi a intercessão de São José’, e também porque nós somos irmãs [da ordem] de São José”, contou.
A irmã relembra que as mulheres sofriam uma série de violências no trajeto da Venezuela até o Brasil. Com a fronteira fechada e a dificuldade que as venezuelanas encontravam para serem acolhidas em território brasileiro, ela abriu as portas da casa onde vivia e passou a acolher mulheres e crianças para retirá-las do cenário de violência de Pacaraima.
Sem apoio no início do trabalho de acolhimento, a irmã contou que “colchão não tinha […] Elas [venezuelanas] chegavam com papelão e dormiam no chão. Já vinham com os papelão para dormir, porque na rua também dormiam em papelão”, disse.
Com a ajuda da Fundação Cáritas, organização vinculada à Igreja Católica, a Casa de São José ganhou um fogão industrial, panelas e cestas básicas. “A gente conseguia um frango, dois. As venezuelanas são criativas. Elas conseguiam fazer um ‘aguadinho’, um arroz gostoso, que dava gosto de comer.”
Com o tempo, a casa chamou atenção dos militares da Operação Acolhida, porque, durante a pandemia, era um dos únicos espaços que davam acolhimento aos migrantes que chegavam ao Brasil.
Contudo, a irmã Maria não contava que um dia o general Antônio Manoel de Barros, na época comandante da Operação Acolhida, faria uma visita à casa e se sensibilizaria com a situação em que aquelas mulheres se encontravam.
“Eu sabia que não [era ilegal acolher as mulheres venezuelanas], porque uma vez que as pessoas refugiadas entram […] o país tem que dar uma resposta. [Mesmo que] tenha a covid, a fronteira esteja fechada ou não, tem que responder por quem está ali dentro. Não é pegar e devolver. Então, baseado nisso, eu fiquei firme, né? Mas não foi fácil”, contou.
A pandemia foi um dos momentos mais difíceis enfrentados pela casa, que estava superlotada. Nesse momento, a irmã se viu em uma situação delicada e precisou escolher quem estava mais vulnerável para acolher.
“Era muito dolorido e eu tinha até um sentimento de culpa: ‘Meu Deus, essa ali também precisa, mas eu tenho que escolher’. Como é que você vai escolher quem é digno de entrar na casa, quem pode ficar ou quem não pode?”, relatou.
Xenofobia causava indignação
Os venezuelanos que chegavam pela fronteira e dormiam sob marquises dos estabelecimentos em Pacaraima eram alvos constantes de xenofobia e violência pela população brasileira.
“As lojas contrataram guardas para cuidar para não deixar [as famílias dormirem ali]. Então era violência tanto dos guardas como da Polícia Militar, com gás lacrimogêneo e de pimenta. [A PM] passava nas crianças e em todo mundo”, denunciou a irmã.
A reportagem questionou a Polícia Militar de Roraima. Por meio de nota, a corporação respondeu que “para tomar qualquer providência em relação aos supostos casos de agressão policial, é necessário que haja uma denúncia formal na Corregedoria da PMRR, de forma que os casos sejam devidamente apurados”.
Em seu posicionamento, a PM de Roraima ressaltou que “os casos teriam ocorrido entre os anos de 2018 e 2020, um período de seis a quatro anos, o que impede a corporação de proceder com uma investigação ou atuar sem que tenha havido qualquer registro formalizado”.
Após os episódios de violência vividos pelos venezuelanos em Pacaraima, a irmã passou a auxiliar as vítimas nas denúncias junto aos órgãos de direitos humanos que começavam a chegar na região, junto com a Operação Acolhida.
“[Quando] eram 11h por aí e a polícia sabia que eles [famílias venezuelanas] estavam cozinhando, a polícia passava e virava os fogões todos, derramava a comida, pisoteava tudo isso. As crianças choravam. Isso era para que as pessoas saíssem da cidade”, denunciou.
A invasão
Em março de 2021, agentes da Polícia Federal e da Força Integrada de Combate ao Crime Organizado (Ficco) de Roraima invadiram a Casa São de José. Eles teriam sido acionados para auxiliar a Vigilância Sanitária de Pacaraima a averiguar uma denúncia de aglomeração.
Segundo a irmã Ana, os agentes chegaram antes das 8h, enquanto as moradoras estavam acordando. “Com que ordem vocês entraram na minha casa? Eu disse: ‘Vocês têm ordem judicial pra isso?’”, contou a irmã enquanto repetia com a mão o sinal que fez ao promotor de Justiça para questionar a existência do documento.
As abrigadas estavam todas encurraladas em um canto de um dos cômodos do imóvel enquanto os policiais pediam documentos. De acordo com a irmã, as moradoras não tinham documentos porque os postos de triagem na fronteira estavam fechados. “[Os policiais] Pedindo documento para elas e mexendo na casa como se tivesse droga.”
A reportagem questionou a Polícia Federal sobre a invasão à casa, mas esta não respondeu até a publicação.
Ana Maria da Silva tratou de procurar a direção da Operação Acolhida, que estava em Brasília, para contar sobre a invasão policial na casa de acolhimento e pedir ajuda para tentar encontrar um espaço para acolher as mulheres e crianças que moravam na Casa São de José.
Com o apoio da Agência da ONU para Refugiados (Acnur), ela conseguiu que todas as mulheres fossem levadas para os abrigos da Operação Acolhida. A decisão ocorreu após o Ministério Público de Roraima ter enviado um pedido de acolhimento, e, com a aprovação do Tribunal de Justiça do estado, as mulheres conseguiram fazer a documentação e serem acolhidas.
Depois da invasão, a Casa São de José ganhou fama e passou a receber ajuda de ONGs e pessoas interessadas em fazer doações de camas, colchões, material de higiene e roupas.
Cachorra protege abrigadas contra homens
Assim que a reportagem chegou à casa, Blanca, uma cachorra da raça dálmata, caminhava entre os cômodos com o olhar desconfiado e uma focinheira. O comportamento tem uma razão: ela costuma atacar os homens que se aproximam das mulheres e crianças que vivem no espaço.
“Ela chegou com a família venezuelana, porque, quando eles vinham, eles traziam os seus animais de estimação, que estavam juntos. Chegando aqui, por causa das dificuldades, por viver na rua, os animais também ficaram perdidos”, lembrou a irmã com sorriso no rosto.
A família à qual Blanca pertencia teve que deixar Pacaraima e não pôde levá-la. A irmã, portanto, adotou-a e o animal passou a fazer a segurança do abrigo.
Como a casa estava em uma área pouco segura, Blanca dormia na frente do dormitório. “[A casa] era muito vulnerável. A gente corria muito risco por serem só mulheres […] O contexto em si era perigoso. Então, a cachorra aprendeu, de verdade, a não deixar nenhum homem entrar. Ela deitava bem na porta do dormitório e as mulheres se sentiam muito seguras com ela. E eu também tinha segurança com ela”, contou.